Um tango atravessou minha vida
* Por Eduardo Murta
Tão nova e de personalidade tão densa. Eram os humores da idade. Namorando a adolescência, se achava perto de ser dona do mundo. Se não dele, do próprio nariz. Foi inspirada nesse ar de autossuficiência que Bia havia decidido. Às favas a preferência de pai e mãe, com todo respeito, mas sua festa de 15 anos, maneira alguma, se renderia ao jeito bem-comportado e sonolento da valsa. Queria era a dramaticidade do tango.Pagaria qualquer esforço para se ver livre daquela ameaça. E valsinhas, definitivamente, estavam fora de seu script. Arquitetou a mudança de planos e avisou aos pais: era aquilo ou nada. Que não viessem com choramingos. E, por favor, nada de modelitos cor-de-rosa ou branquinhos para o baile. Era o vermelho, declaradamente rubro, que elegera.
Manteria os cabelos presos – só uma mecha pendendo à lateral. Se antevia em maquiagem insinuante, marcando os olhos. E um decote que faria enrubescer família. As fronteiras dos seios sugerindo desejos, costas nuas... E coxas inteiramente à mostra. Contraponto, reservaria uma rosa amarela para levar à boca entre um e outro bailado. Encomendara também pinta preta, cigarilha, estilo anos 1920, mas só para gênero, porque manteria apagada.
Tudo dito naquela manhã à mesa do café, os pais estupefatos com as convicções da menina. Sequer escondiam uma ponta de mágoa. Tanta dedicação, e ela, mal saída da fase de escoteira, ditando deliberações. O pai pôs o dedo em riste, a mãe franziu o cenho, brava, e Bia solenemente se retirou. No caminho, deu meia-volta, um passo para se apoiar na bancada da copa. Mãos no queixo, encarou a ambos: "Ah, e tem mais: quero perder a virgindade no dia da festa".
Aí, sim, o espanto tomou a atmosfera. O que era aquilo mesmo? Uma adolescente rumo aos 15 anos falando em ir para a cama com alguém?!?! Na-na-ni-na-não!!!!! “Mas até minhas amigas de 13 anos...”. Foi bruscamente interrompida por Galeano. As bochechas trêmulas, salivando. Jamais permitiria. Um tapa sobre a mesa e fez trepidar o conjunto de xícaras finas importadas. E iria além. Insistisse, estaria sepultada a simples idéia de festejar a data.
Ah, era para radicalizar?!?!. Que fosse, pois! Bia se desalojou em passo de irritação paquidérmica. Bateu a porta do quarto com violência. Trancou a porta. Fechou-se ao mundo. Dia seguinte, tinha feito as malas. Esperou que os pais se levantassem. Nem lhes dirigiu a palavra. Entregou, secamente, um bilhete. Dizia, em resumo, que estava indo embora. Travou os lábios, a que não chorasse. No fundo, queria que a impedissem. O pai dobrou a folha, freou recaída sentimental da mulher e, em silêncio, abriu a porta para que Bia partisse.
Nem virou para despedida. Fez como que morrera. Familiares angustiados, achando que retornaria dias à frente. Não retornou. Deu notícias dois anos mais tarde, revelando que se enclausurara em colégio de freiras. Que abraçara a carreira de fé. Freira convicta. E, comemorassem, porque se mantinha virgem. Disse que os amava, que aprendera com seus erros, que tinha saudade, mas não tornaria a vê-los. Cartão perfumado, evitou postar com endereço. E que aguardassem, um dia saberiam dela.
E não é que sim?!?! Foi pela TV, em rede mundial. Pai e mãe aos 89 anos, Bia aos 69, parando Buenos Aires. Acabaram despertados pela peculiaridade do caso e a reconheceram. Cerimônia convocada pela imprensa, renunciaria à ordem religiosa para entregar coração e virgindade a um maduro professor de tango. Reservou espaço num tablado da Feira de San Telmo, beijou o hábito, como pedindo compreensão divina. Pôs-se inteiramente nua.
Tinha a silhueta magra. Retirou o vestido da mochila. Densamente rubro. Decotado. Provocante. Borrou-se em maquiagem. Não se esqueceu da pinta, nem da cigarrilha. Encaixou a rosa vermelha à boca. Chamou o parceiro ao centro e ordenou que soltassem a voz de Carlos Gardel. Cravou o olhar nas lentes. Sorriu. Era para os pais. Sabia, onde quer que estivessem, que se deixariam levar por ela naquela contradança. Sem o mofo dos rancores. Sem ponta de mágoa tardia.
* Jornalista, autor de "Tantas Histórias. Pessoas Tantas", livro lançado em maio de 2006, que reúne 50 crônicas selecionadas publicadas na imprensa. É secretário de Redação do jornal Hoje em Dia, diário de Belo Horizonte. Já teve passagens também pelos jornais Diário de Minas e Estado de Minas, além de Folha de S.Paulo e revista Veja. É um dos colunistas do Hoje em Dia (www.hojeemdia.com.br), onde publica às quartas-feiras.
* Por Eduardo Murta
Tão nova e de personalidade tão densa. Eram os humores da idade. Namorando a adolescência, se achava perto de ser dona do mundo. Se não dele, do próprio nariz. Foi inspirada nesse ar de autossuficiência que Bia havia decidido. Às favas a preferência de pai e mãe, com todo respeito, mas sua festa de 15 anos, maneira alguma, se renderia ao jeito bem-comportado e sonolento da valsa. Queria era a dramaticidade do tango.Pagaria qualquer esforço para se ver livre daquela ameaça. E valsinhas, definitivamente, estavam fora de seu script. Arquitetou a mudança de planos e avisou aos pais: era aquilo ou nada. Que não viessem com choramingos. E, por favor, nada de modelitos cor-de-rosa ou branquinhos para o baile. Era o vermelho, declaradamente rubro, que elegera.
Manteria os cabelos presos – só uma mecha pendendo à lateral. Se antevia em maquiagem insinuante, marcando os olhos. E um decote que faria enrubescer família. As fronteiras dos seios sugerindo desejos, costas nuas... E coxas inteiramente à mostra. Contraponto, reservaria uma rosa amarela para levar à boca entre um e outro bailado. Encomendara também pinta preta, cigarilha, estilo anos 1920, mas só para gênero, porque manteria apagada.
Tudo dito naquela manhã à mesa do café, os pais estupefatos com as convicções da menina. Sequer escondiam uma ponta de mágoa. Tanta dedicação, e ela, mal saída da fase de escoteira, ditando deliberações. O pai pôs o dedo em riste, a mãe franziu o cenho, brava, e Bia solenemente se retirou. No caminho, deu meia-volta, um passo para se apoiar na bancada da copa. Mãos no queixo, encarou a ambos: "Ah, e tem mais: quero perder a virgindade no dia da festa".
Aí, sim, o espanto tomou a atmosfera. O que era aquilo mesmo? Uma adolescente rumo aos 15 anos falando em ir para a cama com alguém?!?! Na-na-ni-na-não!!!!! “Mas até minhas amigas de 13 anos...”. Foi bruscamente interrompida por Galeano. As bochechas trêmulas, salivando. Jamais permitiria. Um tapa sobre a mesa e fez trepidar o conjunto de xícaras finas importadas. E iria além. Insistisse, estaria sepultada a simples idéia de festejar a data.
Ah, era para radicalizar?!?!. Que fosse, pois! Bia se desalojou em passo de irritação paquidérmica. Bateu a porta do quarto com violência. Trancou a porta. Fechou-se ao mundo. Dia seguinte, tinha feito as malas. Esperou que os pais se levantassem. Nem lhes dirigiu a palavra. Entregou, secamente, um bilhete. Dizia, em resumo, que estava indo embora. Travou os lábios, a que não chorasse. No fundo, queria que a impedissem. O pai dobrou a folha, freou recaída sentimental da mulher e, em silêncio, abriu a porta para que Bia partisse.
Nem virou para despedida. Fez como que morrera. Familiares angustiados, achando que retornaria dias à frente. Não retornou. Deu notícias dois anos mais tarde, revelando que se enclausurara em colégio de freiras. Que abraçara a carreira de fé. Freira convicta. E, comemorassem, porque se mantinha virgem. Disse que os amava, que aprendera com seus erros, que tinha saudade, mas não tornaria a vê-los. Cartão perfumado, evitou postar com endereço. E que aguardassem, um dia saberiam dela.
E não é que sim?!?! Foi pela TV, em rede mundial. Pai e mãe aos 89 anos, Bia aos 69, parando Buenos Aires. Acabaram despertados pela peculiaridade do caso e a reconheceram. Cerimônia convocada pela imprensa, renunciaria à ordem religiosa para entregar coração e virgindade a um maduro professor de tango. Reservou espaço num tablado da Feira de San Telmo, beijou o hábito, como pedindo compreensão divina. Pôs-se inteiramente nua.
Tinha a silhueta magra. Retirou o vestido da mochila. Densamente rubro. Decotado. Provocante. Borrou-se em maquiagem. Não se esqueceu da pinta, nem da cigarrilha. Encaixou a rosa vermelha à boca. Chamou o parceiro ao centro e ordenou que soltassem a voz de Carlos Gardel. Cravou o olhar nas lentes. Sorriu. Era para os pais. Sabia, onde quer que estivessem, que se deixariam levar por ela naquela contradança. Sem o mofo dos rancores. Sem ponta de mágoa tardia.
* Jornalista, autor de "Tantas Histórias. Pessoas Tantas", livro lançado em maio de 2006, que reúne 50 crônicas selecionadas publicadas na imprensa. É secretário de Redação do jornal Hoje em Dia, diário de Belo Horizonte. Já teve passagens também pelos jornais Diário de Minas e Estado de Minas, além de Folha de S.Paulo e revista Veja. É um dos colunistas do Hoje em Dia (www.hojeemdia.com.br), onde publica às quartas-feiras.
O que é do homem o bicho não come. Antes tarde do que nunca. Afinal, é possível em qualquer idade arfar entre as nervosas pregas de um bandoneon. Parabéns, Murta.
ResponderExcluirQue historia incrível! Ah...se todos pudessem realizar seus sonhos como esta mulher!
ResponderExcluirAbraços
Adorei !
ResponderExcluirQuando vejo um filme com um casal dançando TANGO, babo.
A sensualidade do " tango" conquista !
Me identifiquei com Bia.
Meu sonho é dançar um tango, vestida exatamente como a personagem. Primeiro, é claro, tenho que aprender. Depois...quem sabe...um dia...
Muito bom ! Muito bom !
Embora ficcional, acho difícil uma atitude dessas, as iniciais, em 1955.Era fase antes do feminismo. Mas como lição de sonho realizado tardiamente, achei intenso e marcante. Nunca é uma palavra que não existe para os apaixonados, e Bia era assim.
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