

Os sinos seculares gritam Vlado, Vlado...
* Por Eduardo Murta
Se a existência era movida por significados, Vlado já elegera o seu: fazer com que a vida, caprichosamente, imitasse a arte. Começara ainda menino, chapéu coco do avô deslizando à cabeça, blazer negro quase arrastando ao chão. Era ele tentando furar o bloqueio popular, nas ladeiras seculares de São João del-Rei, a que o acolhessem como figurante da procissão de Semana Santa. Perdera a conta do quanto fora repelido. O máximo que obtivera em se aproximar de Chaplin, o mito que simbolizava, se resumiu ao pontapé na bunda do policial que o enxotara. E, pernas curtas, a disparada desembestada na fuga.
A investida seguinte foi mais ortodoxa. Começando a conhecer o mundo, buscou inspiração em ninguém menos Franz Kakfa para se pôr inteiramente mudo em casa, na escola, nos domingos de igreja e mesmo nas brincadeiras de rua, das quais deliberadamente se alijava. Deixou-se tomar por um sentimento de torpor e silêncio que acabou virando caso médico. Resistiu, resistiu, até que finalmente cedeu, forçado pela ameaça de que seu próximo endereço fosse o manicômio de Barbacena. De lá se contavam horrores.
Depois, traduziu com candura para a família: decidira experimentar uma dose de angústia do personagem de “A Metamorfose” e, a uma platéia de parentes atônitos, descreveu como era triste a rotina de um inseto. Ficaram estupefatos. A partir dali, o trataram com uma compreensão para além do trivial. Sem reprimendas sequer na ocasião em que encomendou cipós na feira de sábado, decidido a cumprir rituais de Tarzan no pomar de casa.
Nem deram espetáculo de rigor quando o flagraram em plena praça, indumentária de pintor, cavalete armado, uma coleção de pincéis à mão, anunciando uma tarde à Guignard. Pai e mãe riram ao final, porque não faria feio se postassem seu quadro entre alguns artistas que invocavam o pedigree da vanguarda. Afinal, não se compreendia nada mesmo do que transpusera para a tela, ainda que insistisse que aquilo fosse uma silhueta da matriz. Ah, bom...
O mais dramático, porém, estaria por vir. O Natal em que se metera em roupas pesadas, num vermelho-trágico, e era ele com sineta estridente de um Papai Noel movido a álcool e esperança vã, dando vivas à comunidade do morro. Pior: levara tia Raimunda e tia Juliana, sexagenárias, metro e meio de altura, como duendes de plantão. As cadelas Ricota e Maria fazendo os papéis de renas. E a sacola de presentes representando três semanas de faturamento da lojinha familiar de tecidos. Uma tragédia.
Mas retornara feliz. E, o melhor, lá conhecera Margarida. Vlado prometera voltar para revê-la. Nas idas e vindas, foi notando aquele leque de palpitações ao peito. Jamais se esqueceria do laço de fita que a acompanhava. Do vestido lilás que a punha mais bela. Julgou que era visita do amor. E era. Daqueles sem medidas. Ela, matuta, embora correspondesse, cobrou provas de cumplicidade. Seus olhinhos não escondiam o desconforto da incerteza. Elencou atos tresloucados, a que ele cumprisse como prova do querer.
A Vlado aquilo soava como inspiração. Pichou os muros da cidade com os códigos que ela indicou. Incluindo a delegacia. Varou a madrugada, a que completasse os cinco cestos de rosas roubadas sob encomenda. Respirou aliviado, achando que fizera o bastante. A amada exigia mais. E naquele domingo de março, as ondas de frio já arranchando às portas da velha São João del-Rei, pôs a cidade de pé antes que os ponteiros se desvencilhassem da madrugada.
Ninguém jamais explicou aquele fenômeno de os sinos repicando da matriz à mais recatada das capelas da cidade. Enlouquecidos. E contam que pararam só na semana seguinte, em que, invocando Hemingway, Vlado pisou na igreja em trajes imortalizados por Gary Cooper. Margarida chegou feito fosse uma Ingrid Bergman e só ela sabia, o coração em sentimento trôpego, por quem os sinos dobravam naquela hora.
* Jornalista, autor de "Tantas Histórias. Pessoas Tantas", livro lançado em maio de 2006, que reúne 50 crônicas selecionadas publicadas na imprensa. É secretário de Redação do jornal Hoje em Dia, diário de Belo Horizonte. Já teve passagens também pelos jornais Diário de Minas e Estado de Minas, além de Folha de S.Paulo e revista Veja. É um dos colunistas do Hoje em Dia (www.hojeemdia.com.br), onde publica às quartas-feiras.
* Por Eduardo Murta
Se a existência era movida por significados, Vlado já elegera o seu: fazer com que a vida, caprichosamente, imitasse a arte. Começara ainda menino, chapéu coco do avô deslizando à cabeça, blazer negro quase arrastando ao chão. Era ele tentando furar o bloqueio popular, nas ladeiras seculares de São João del-Rei, a que o acolhessem como figurante da procissão de Semana Santa. Perdera a conta do quanto fora repelido. O máximo que obtivera em se aproximar de Chaplin, o mito que simbolizava, se resumiu ao pontapé na bunda do policial que o enxotara. E, pernas curtas, a disparada desembestada na fuga.
A investida seguinte foi mais ortodoxa. Começando a conhecer o mundo, buscou inspiração em ninguém menos Franz Kakfa para se pôr inteiramente mudo em casa, na escola, nos domingos de igreja e mesmo nas brincadeiras de rua, das quais deliberadamente se alijava. Deixou-se tomar por um sentimento de torpor e silêncio que acabou virando caso médico. Resistiu, resistiu, até que finalmente cedeu, forçado pela ameaça de que seu próximo endereço fosse o manicômio de Barbacena. De lá se contavam horrores.
Depois, traduziu com candura para a família: decidira experimentar uma dose de angústia do personagem de “A Metamorfose” e, a uma platéia de parentes atônitos, descreveu como era triste a rotina de um inseto. Ficaram estupefatos. A partir dali, o trataram com uma compreensão para além do trivial. Sem reprimendas sequer na ocasião em que encomendou cipós na feira de sábado, decidido a cumprir rituais de Tarzan no pomar de casa.
Nem deram espetáculo de rigor quando o flagraram em plena praça, indumentária de pintor, cavalete armado, uma coleção de pincéis à mão, anunciando uma tarde à Guignard. Pai e mãe riram ao final, porque não faria feio se postassem seu quadro entre alguns artistas que invocavam o pedigree da vanguarda. Afinal, não se compreendia nada mesmo do que transpusera para a tela, ainda que insistisse que aquilo fosse uma silhueta da matriz. Ah, bom...
O mais dramático, porém, estaria por vir. O Natal em que se metera em roupas pesadas, num vermelho-trágico, e era ele com sineta estridente de um Papai Noel movido a álcool e esperança vã, dando vivas à comunidade do morro. Pior: levara tia Raimunda e tia Juliana, sexagenárias, metro e meio de altura, como duendes de plantão. As cadelas Ricota e Maria fazendo os papéis de renas. E a sacola de presentes representando três semanas de faturamento da lojinha familiar de tecidos. Uma tragédia.
Mas retornara feliz. E, o melhor, lá conhecera Margarida. Vlado prometera voltar para revê-la. Nas idas e vindas, foi notando aquele leque de palpitações ao peito. Jamais se esqueceria do laço de fita que a acompanhava. Do vestido lilás que a punha mais bela. Julgou que era visita do amor. E era. Daqueles sem medidas. Ela, matuta, embora correspondesse, cobrou provas de cumplicidade. Seus olhinhos não escondiam o desconforto da incerteza. Elencou atos tresloucados, a que ele cumprisse como prova do querer.
A Vlado aquilo soava como inspiração. Pichou os muros da cidade com os códigos que ela indicou. Incluindo a delegacia. Varou a madrugada, a que completasse os cinco cestos de rosas roubadas sob encomenda. Respirou aliviado, achando que fizera o bastante. A amada exigia mais. E naquele domingo de março, as ondas de frio já arranchando às portas da velha São João del-Rei, pôs a cidade de pé antes que os ponteiros se desvencilhassem da madrugada.
Ninguém jamais explicou aquele fenômeno de os sinos repicando da matriz à mais recatada das capelas da cidade. Enlouquecidos. E contam que pararam só na semana seguinte, em que, invocando Hemingway, Vlado pisou na igreja em trajes imortalizados por Gary Cooper. Margarida chegou feito fosse uma Ingrid Bergman e só ela sabia, o coração em sentimento trôpego, por quem os sinos dobravam naquela hora.
* Jornalista, autor de "Tantas Histórias. Pessoas Tantas", livro lançado em maio de 2006, que reúne 50 crônicas selecionadas publicadas na imprensa. É secretário de Redação do jornal Hoje em Dia, diário de Belo Horizonte. Já teve passagens também pelos jornais Diário de Minas e Estado de Minas, além de Folha de S.Paulo e revista Veja. É um dos colunistas do Hoje em Dia (www.hojeemdia.com.br), onde publica às quartas-feiras.
Este mundo é dos loucos, dos excêntricos. Ou deveria ser. Porque, com a arte no comando, tudo ganha cores de sonho e uma tal leveza de que a realidade não dá conta. Só a tua pena privilegiada, caro Murta, para soltar pela vielas da cidade um personagem assim tão encantador. Parabéns.
ResponderExcluirEu me apaixonei pelo Vlado e pela Margarida. Como são interessantes os loucos, Murta. E que maravilha que duas pessoas tão criativas, tão excêntricas tenham se encontrado. Feitas uma para a outra. Lindo!
ResponderExcluirBeijos
Risomar
Uma pessoa que passaria despercebida ganhou ares de personagem inesquecível na sua visão, Murta. Como uma maneira poética pode transformar fatos do dia a dia em grandes momentos, e pessoas banais em protagonistas.
ResponderExcluirAh, vocês são generosos demais.... Um beijo com grãos de loucura a todos!
ResponderExcluir