terça-feira, 3 de novembro de 2009




Lobato, rogai por nós!

* Por Risomar Fasanaro

C
ento e sete anos Drummond estaria completando nesse sábado, dia 31. Houve um alvoroço no prédio onde moro, e quando um grupo de adolescentes tocou a campainha de minha casa, pensei que eles estivessem preparando uma homenagem ao Poeta. Como sempre, sonhei. E sonhei alto.

Assim que abri a porta, a decepção tomou conta de mim. Era um grupo festivo sim. Estavam todos fantasiados, com os rostos pintados, mas logo vi que a festa não era em homenagem ao bruxo das palavras. Era outra. E homenageava bruxas sim, mas as bruxas norte-americanas. As fantasias eram de bruxos, e a festa era a de Halloween. Que tristeza...

Não que eu seja contra a cultura de outros países, mas gostaria que a nossa fosse mais valorizada.

Tudo bem festejar as bruxas dos outros, mas e nossos mitos, como é que ficam? Alguns “doidos” como eu, tentam há anos falar e escrever sobre a importância de se criar no dia 31 de outubro, em todas as cidades, o Dia do Saci. Existe até um projeto de lei que ainda não foi aprovado, criando esse dia, para homenagear aquele que talvez seja nosso principal mito folclórico, mas ainda é pequena a repercussão, embora este ano estejam iniciando um movimento para que ele seja o símbolo das Olimpíadas em 20016.

Acompanhei como em pouquíssimo tempo as escolas de inglês conseguiram que o dia de Halloween fosse não apenas lembrado, mas comemorado com todas as pompas, e como essas comemorações invadiram as escolas, os clubes, as casas...

Mas voltando ao sábado: as crianças vinham em bandos à minha porta: “doces ou travessuras”, e eu com aquela cara de besta, sem saber o que dizer, porque o que passava pela minha cabeça era : “provavelmente esta frase é a tradução literal do que se diz nos EUA, e o nosso Saci?” As crianças ficaram me olhando, esperando...Afinal não é delas a culpa por desconhecerem nossos mitos, nosso folclore... Não têm culpa de eu ser tão alheia às suas brincadeiras.

Sei que os salões são decorados com jerimuns, e na minha cabeça, jerimum é muito bom dentro do feijão, ou então com carne-de-sol e manteiga de garrafa, melhor ainda se for em Afogados, bairro do Recife. Ou então recheado com camarão e catupiry, como se faz aqui em SP.

Não consigo imaginar que alguém estrague os jerimuns recortando-os com caras de caveiras e colocando velas dentro, para decorar uma festa.

Sinto vontade de pedir às crianças: vistam-se de sacis...Tirem essas fantasias que são pura macaquice, e comemorem, homenageiem o nosso Saci. Ele com suas peraltices tem muito mais a ver com vocês do que as bruxas... Ou então façam uma bruxaria para que nosso povo valorize mais nossas tradições culturais! Mas olho e vejo que aqueles olhinhos inocentes a me pedir doces não seriam capazes de nenhuma bruxaria, e me recolho ao apartamento depois de me desculpar: vocês estão lindos, mas não tenho doces. “Nem um pirulito?” me perguntam. “Não, nenhum”, respondo.

Penso em conversar com elas, mas as bruxas têm pressa, mal vêem minhas mãos vazias e já correm para as outras duas portas. E fico ali, com o coração triste. É difícil dizer não a uma criança, e sou forçada a dizer.

As outras portas se abrem, e as pessoas riem, são simpáticas, dão doces, bombons, pirulitos e me sinto mais e mais humilhada. Sou despreparada, constato mais uma vez, não compro doces para as crianças, não tenho o que lhes dizer sobre o Halloween..
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Depois disso, penso, “elas nunca mais irão segurar a porta do elevador pra mim, nem me ajudar a carregar as sacolas do supermercado. Uma mulher que não comemora a festa de Halloween, enfim, não deve nem falar inglês, não merece afeto”.
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Lembro-me de “O Tênis do Saci”, meu livro infantil. Tão brasileiro, com cenas no meio da mata. Quem sabe se fosse sobre uma bruxa, meu sucesso estivesse garantido..
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Ah, Lobato, que falta você nos faz!

* Jornalista, professora de Literatura Brasileira e Portuguesa e escritora, autora de “Eu: primeira pessoa, singular”, obra vencedora do Prêmio Teresa Martin de Literatura em júri composto por Ignácio de Loyola Brandão, Deonísio da Silva e José Louzeiro. Militante contra a última ditadura militar no Brasil.


4 comentários:

  1. Há espaço para todos, inclusive para excrescências importadas sem nenhum explicação, afinal estamos num mundo globalizado. No entanto as nossas tradições são esmagadas e delas nada restam. Quando menina a minha equipe de colégio chamava-se Equipe Saci. É uma lembrança tão embolorada que cheguei a me assustar ao me lembrar dela. Estamos ficando habituados a engolir,não sem antes reclamar, os estrangeiros impostos. Mas ainda temos fôlego. Vamos alçar a condição de mito o nosso Saci.

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  2. Belo protesto, cara Ris, mas acredito que seja uma batalha perdida. Somos colonizados, manipulados por líderes midiáticos, fanatizados por deuses financeiros, bitolados pelo marketing do conservadorismo ... É, quem diria, ficamos todos caretas, apesar da revolucionária década de 60 e da libertária 70. Resta, em nós, pelo menos, essa saudade brejeira de Lobato. Foi bom enquanto durou, ah se foi!

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  3. Obrigada, Mara, Obrigada, Daniel!
    Não sou contra o que vem de fora. Pelo contrario. Temos excelentes exemplos na música, na pintura, no cinema, na literatura. Mas que também se valorize o que é nosso, não é?
    Beijos nos dois
    Ris

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  4. Riso, não fique triste. A criançada gosta de farra !
    Durante muitos anos a Rede Globo exibiu o Sítio do Picapau Amarelo. Muita gente cresceu assistindo as histórias de Emília, Narizinho, O Saci e sua turma.
    Divulgação é a " alma " da Literatura.

    Grande beijo !

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