quarta-feira, 10 de junho de 2009




Sutilezas

* Por Clara dos Anjos

Descia a rua central. Vestia saia, blusa de gola roulê, casaco e botas de cano longo. Era inverno. Ele vinha pela mesma rua, em direção a ela. Os mesmos sapatos libidinosos. Foi um encontro casual. Passou por ele, ensaiou um cumprimento blasè, como se nada pudesse despertá-la da inércia sexual em que mergulhara. Ele respondeu como de costume. Educado, sem ser efusivo.

Chegou em casa. Despiu-se diante do espelho. Ainda era uma mulher desejável. O corpo, aos poucos voltava ao normal. Os desejos? “Ainda não”, pensou. “Talvez nunca mais”.

Passaram-se dias. Vida sem sobressaltos. Algumas mudanças. Pessoas se foram, outras chegaram. Desejos? “Não”, pensou. “Não há razão”.

Foi ao compromisso da semana. Gostava do inverno, de roupas sóbrias. Cobria-se quase que da cabeça aos pés, rotineiramente. Não era uma santa, menos ainda demônio. Antagônica. Normal. No fio tênue, divisor. Nem lá, nem cá. Convidaram-na a refazer os estudos. Aceitou. Um rapaz lhe ofereceu carona depois das tarefas. Era seu conhecido de infância e agora se tornavam amigos. A localização não seria mais desculpa para ausentar-se da escola.

Mais alguns dias. Ocupava-se ao máximo. Compromissos diversos, pessoas diversas. Nada de rotina. Variava o percurso. Queria ver outras coisas. Sede de descobertas. Desejos? “Não. Isso não está no script”, concluiu.

Um dia comum. Cheio. Muitas obrigações. De repente, passavam pela mesma rua em sentidos opostos, ela e o homem dos sapatos. Ela invernal, ele, com os sapatos libidinosos. Olhou-a e a convidou para um suco. Única frase durante o encontro. Sentados, frente a frente. Silêncio. O local era público. No limite imposto pela discrição, olhos e pés abraçavam-se, apertavam-se, tocavam-se. Despiu os sapatos libidinosos e enfiou os dedos dentro das suas botas.

Molhada, disfarçou. Fingiu derramar suco na roupa. Intumescido, transferiu o casaco, dos ombros para a cintura. Saciados. Só olhos e pés. Despediram-se. Pernas trêmulas, ela levantou-se primeiro. Cambaleando. Andou lentamente. O mel ainda escorria pelas pernas.

Desejos? “Sim”, anuiu. E orgasmo. Completo. Visceral.
Fantasiosa? E porque não? Olhos, pés e orgasmos múltiplos.

*Clara dos Anjos é cronista/contista/poeta, nasceu em Montes Claros, interior do estado de Minas Gerais e reside na capital Belo Horizonte. É colaboradora em suplementos literários e comunicadora. Recebeu o nome de um personagem do escritor Lima Barreto, de quem seu pai era leitor e admirador. Prepara a publicação de seu primeiro livro "Ecos", compilação de crônicas, contos e poemas.

3 comentários:

  1. Coceiras, pigarros, aquela agüínha escorrendo do canto do olho ... uhm ... acho que fiquei impossível e prefiro não me estender acerca desta crônica perturbadora, em que a elegância do texto não desautorizou a libido. Que coisa, sô! Parabéns, Clara!

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  2. A abstinência leva a resultados rápidos e inesperados, algumas vezes fáceis. Não havia nada a dizer antes, e muito menos depois. Com sapatos libidinosos não há espaço para coisas além do físico. Forte e excelente texto, capaz de levantar até o mais desanimado. E apenas com sutilezas, como no título.

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  3. Olá, Daniel e Mara,grata pelos respectivos comentários. A libido é mesmo inspiradora. De algum modo, é necessário extravasar, não é verdade? Beijo pra vocês. Continuamos por aqui, às vezes só na espreita.
    Clara

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