sexta-feira, 26 de junho de 2009




Impeça-me!

* Por Clara dos Anjos

Ah, meu amor, se dissesses “não vá!”, eu desmancharia nesse instante a minha mala. Pararia o relógio. Ligaria aos muitos que me esperam: “eu não vou, mais não vou, porque o meu amor pediu, porque o meu amor chegou!”

Ah, meu amor, se pudesses ler o que as mãos cansadas e o coração partido te enviam, se pudesses ver a tristeza dos meus olhos, o vagar da minh’alma, a solidão da minha dor disfarçada em largo sorriso, dirias: “não vá! Você não quer mesmo ir!”.

Eu não iria. Sentar-me-ia à beira da cama, que hoje mais parece abismo, rezaria ao mundo a oração dos aflitos, porque todos os amantes são aflitos. E amante eu seria. Da noite, do luar, das estrelas que te representam. E esperaria até quando pudesses voltar.

Ah, meu amor, se pudesses decifrar a minha letra em cada oração, se pudesses compreender a minha pressa, responderia com teus olhos brilhantes: “Não vá! Espere-me, eu vou voltar!”

Eu soltaria foguetes, cintilaria como teus olhos, cingiria o céu, o chão, o todo, com a tinta verde da esperança, com o branco da pureza e alcançaria o fastigio da eternidade.

Ah, meu amor, se soubesses que até o último minuto desta noite fria e ainda ao amanhecer, antes de partir, esperei que balbuciasses duas palavras e apenas cinco letras, eu que tanto exigi de você, sentiria quão imensa é a minha vontade de ficar.

Ah, meu amor, se ousasses desafiar o destino e interceptar o carro que daqui me levarás, tão logo o banquete da primeira grande refeição cessar, saberias que loucos são os que não cometem desatinos.

Ah, meu amor, se pudesses lançar-me uma palavra apenas, indireta, mas claramente direcionada ao meu bom entendimento, sinalizando que devesses esperar, ah, meu grande amor, agora mesmo eu devolveria as roupas aos cabides, a mala ao porão, fecharia as gavetas, guardaria os calçados em suas caixas, apagaria as luzes, abriria a janela, somente para dizer-te: “eu não vou. Esperarei por ti, quanto precisar”.

Ah, meu amor, mas os sonhos não saem daqui, não chegam a ti. É provável que nunca leia o que nasceu de ti, por ti.

Ah, meu amor, estas linhas, quando e se aportarem por aí, não serão lidas, atendidas, antes que me lance à estrada longa que me conduzirá a um caminho sem volta. Estrada que, parte dela, percorri com você. Estrada que dividistes comigo, traduzindo suas percepções, pelo aparelho sem fio, que me servia de amparo na sua ausência e na saudade.

Ah, meu amor, nessa estrada, sei que não tereis a voz suave a me acompanhar, a presença irradiante, transcendental, que enxergava lírios no pântano. Ah, meu amor, rumo para ferir. Ferir, com as feridas que deixastes em mim. São as que tenho. São as únicas que posso ofertar. Ah, meu amor, preciso encontrar um motivo para não mais te querer. Preciso aceitar quem me aceita, para não mais te amar. Ah, meu amor, se soubesses que na mala que preparo para viagem, levo muito mais do que gostaria de levar, pronunciaria as duas palavras, pediria, com a humilde certeza de que eu atenderia.

Ah, meu amor, se soubesses, se pudesses, se ousasses, se pedisses, eu não iria. Eu ficaria. Pela eternidade, eu esperaria. Ah, meu grande amor! Nosso tempo se esgota. As horas voam. A viagem se aproxima. O zíper da mala pedindo para ser fechado. E você não balbucia. Ah, meu amor. Impeça-me. Não deixe que eu me vá. A cidade é logo ali, mas partindo, não poderei voltar. Mesmo que eu queira. Ah, meu amor!

*Clara dos Anjos é cronista/contista/poeta, nasceu em Montes Claros, interior do estado de Minas Gerais e reside na capital Belo Horizonte. É colaboradora em suplementos literários e comunicadora. Recebeu o nome de um personagem do escritor Lima Barreto, de quem seu pai era leitor e admirador. Prepara a publicação de seu primeiro livro "Ecos", compilação de crônicas, contos e poemas.

4 comentários:

  1. Meu Deus, quanta intensidade! Raro ver uma mulher se derramar de uma maneira assim tão sem reservas. Algo que se lê com gravidade e admiração. Poesia em prosa, parece. Um cântico, talvez. Seja o que for, é máximo. Parabéns, Clara!

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  2. Clara, você me arrancou lágrimas, e não foram poucas. Quantas de nós vemos um amor se despedaçar? Muitas; porém muito poucas conseguirão, como você, detalhar essa emoção, mostrar essa força intensa, esse maremoto. Belíssimo, e mais não sei dizer. Parabéns!

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  3. Clara dos Anjos!

    Que lindo, menina! Primeiro, a personagem... Encarnada, faz-se poetisa, prosadora e... Mulher! (Quanto de fermento, gordura e sal é preciso para se fazer um ser humano de raça e coragem, hem?).

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  4. Queridos Daniel, Mara e Luiz, mais uma vez, agradeço a leitura e palavras carinhosas.Obrigada.
    Abs,
    Clara dos Anjos

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