A
mancha humana
* Por
Philip Roth
(…)
-
É o resultado de ter sido criado entre nós - disse Faunia. - É o
resultado de passar toda a vida com pessoas como nós. A
mancha humana -
acrescentou, mas sem repulsa, desprezo ou condenação. Nem sequer
com tristeza. As
coisas são como são -
à sua maneira seca e concisa, era só isso que ela estava a dizer à
moça
que dava de comer à serpente: nós deixamos uma mancha, deixamos um
rastro,
deixamos a nossa marca. Impureza, crueldade, mau trato, erro,
excremento, sêmen.
Não há outra maneira de estar aqui. Não tem nada a ver com
desobediência. Nem com graça, ou salvação, ou redenção. Está
em todos. Sopro interior. Inerente. Determinante. A mancha que existe
antes da sua marca. Sem o sinal de que está lá. A mancha que é tão
intrínseca que não precisa de uma marca. A mancha que precede a
desobediência, que engloba a
desobediência e confunde toda e qualquer explicação e compreensão.
É por isso que toda a purificação é uma anedota. É uma anedota
básica, ainda por cima. A fantasia da pureza é aterradora. É
demencial. O que á ânsia de purificar senão impureza?
Tudo quanto estava dizendo acerca da mancha era que ela é inelutável. Essa era, naturalmente, a visão de Faunia a esse respeito: as criaturas inevitavelmente manchadas que nós somos. Resignada com a horrível imperfeição elementar. Ela é como os Gregos, como os Gregos de Coleman. Como os seus deuses. Eles são mesquinhos. Brigam. Lutam. Odeiam. Assassinam. Fodem. Zeus não quer fazer outra coisa senão foder - deusas, mortais, bezerras, ursas -, e não apenas na sua própria forma, mas também, ainda mais excitantemente, assumindo a forma visível de animal. Para montar colossalmente uma mulher como um touro. Para a penetrar excentricamente como um cisne branco de asas agitadas. Nunca há carne suficiente para o rei dos deuses, nem carne nem perversidade. Toda a loucura que o desejo gera. A devassidão. A depravação. Os prazeres mais grosseiros. E a fúria da esposa que tudo vê.
Não
o deus hebraico, infinitamente só, infinitamente obscuro,
monomaniacamente o único deus que existe, existiu e jamais existirá,
sem nada melhor para fazer do que preocupar-se com os judeus. Nem o
perfeitamente dessexuado homem-deus cristão, e a sua mãe imaculada,
e toda a culpa e vergonha que uma espiritualidade sublime inspira.
Antes, o Zeus grego, enredado em aventuras, vivamente expressivo,
caprichoso, sensual, exuberantemente ligado à sua própria
existência opulenta, tudo menos só e tudo menos oculto. Antes a
mancha divina.
Uma grande religião refletora da realidade para Faunia Farley se, por intermédio de Coleman, ela tivesse aprendido alguma coisa a esse respeito. Pelos padrões da fantasia hubrística, feita à imagem de Deus, sem dúvida, mas não do nosso: do deles. Deus devasso. Deus corrupto. Um deus da vida, se algum houve. Deus à imagem do homem (...)
***
(…)
Porque
nós não sabemos, pois não? Toda
a gente sabe.
O que faz as coisas acontecerem da maneira que acontecem? O que está
subjacente á anarquia da sequência dos acontecimentos, às
incertezas, às contrariedades, à desunião, às irregularidades
chocantes que definem os assuntos humanos? Ninguém sabe,
professora Roux. «Toda a gente sabe» é a invocação do
lugar-comum e o inimigo da banalização da experiência, e o que se
torna tão insuportável é a solenidade e a noção da autoridade
que as pessoas sentem quando exprimem o lugar-comum. O que nós
sabemos é que, de um modo que não tem nada de lugar-comum, ninguém
sabe coisa nenhuma. Não podemos
saber nada. Mesmo as coisas que sabemos,
não as sabemos. Intenção? Motivo? Consequência? Significado? É
espantosa a quantidade de coisas que não sabemos. E mais espantoso
ainda é o que passa por saber (...)
in
"A Mancha Humana"
*
Romancista
norte-americano.
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