A orquídea selvagem
* Por
Pablo Uchoa
Quando
aquela orquídea floresceu, meu amor, novamente na varanda do meu
apartamento, de frente para o skyline
dos prédios na avenida Sumaré, fechei às pressas a porta de correr
que levava à sala de estar. A flor selvagem, selvagem tenho certeza,
despontava branquela, bocuda, canibal, despontava como se fosse
atacar meus miolos, despontava.
Lá fora fazia inverno
brumoso, lá fora para além da porta envidraçada de correr, um céu
cinzento feito a pedra de ardósia que apoiava o vaso de cerâmica.
Como aquele dia insosso em que você me estendeu o vaso em tons
pastéis e me disse, simplesmente, espere a primavera.
Esperei, mas naquele ano a
primavera chegou e nem me dei conta, amor. Quando o broto verde da
orquídea despontou, e ainda a meia-estação clareava, eu estava
ocupado em cultivar no quarto-estufa outra espécie de formosura.
Sou como
uma flor de asfalto,
você soprou certa vez no meu ouvido, assim no meio de alguma noite
pluviométrica. De asfalto, me lembro bem, ouvi enquanto as gotas de
chuva repicavam e embalavam desordeiras pelo meio-fio, caules se
espraiavam e se espichavam pelos travesseiros. Ao pé da cama
fincavam-se raízes, e no centro dela nos encontrávamos estampados
como duas folhas verdes, duas folhas.
Tivemos, tive meus dias de
jardineiro, enquanto o sol da primavera lambia os lençóis brancos e
se esgueirava para dentro do quarto. Acordávamos e bem no meio do
edredon, como uma sarda rosada do copo leitoso da orquídea,
abriam-se seus olhos castanho-claros que me viam através das suas
pupilas desabrochadas, pupilas de babado, como begônias
verde-castanhas.
Não sei, amor, se foi meu
desajeito para as plantas, ou se porque era mesmo muito cedo para
alguma coisa florescer, faltavam primaveras. Foi tudo tão rápido,
no tempo de uma estação passamos de primavera a verão a inverno,
pulamos o outono, saltamos os galhos do ano e quando percebi já tudo
estava murcho, ao chão, murcho. Jaziam pendurados meus cortadores e
rastelos, os manuais de jardinagem com a descrição dos hibiscos do
Jardim Botânico.
Foi talvez alguma erva
daninha, uma erva daninha perdida entre meus cabelos-roseira que você
sulcava como um jardineiro à procura de espinhos, numa dessas noites
que tinham ao fundo Omara Portuondo cantando o amor que nasceu de uma
flor. Ou simplesmente um bichinho, um mísero inseto que acendeu seus
instintos de planta carnívora, suas presas que saltavam e se
agarravam às paredes do quarto-estufa, chafurdando os lençóis até
caírem cansadas aos primeiros raios do dia.
Você parecia uma flor
selvagem, eu pensava, uma flor canibal, mas ainda uma flor, isso eu
sabia porque seu rosto em turbilhão era pálido e delicado como uma
pétala de rosa.
Atarantado eu observava você,
amor, e pensava no arranjo que a floricultura deixara em nossa porta
pouco antes, o buquê de amores-perfeitos que tive o cuidado de
remover dali antes de você deixar o quarto. Era uma dessas
madrugadas cinzentas em que a lua mais parecia uma medalha fosca no
céu, e não havia nenhum, nem sequer um raio de sol a recordar que a
primavera estava a caminho, que em pouco tempo haveria flores.
De frente para o cimento da
avenida Sumaré escondia-se nossa orquídea, as raízes comprimidas
nas paredes do vaso. E se houvesse mais terra sob ela, se não fossem
apenas uma pedra de ardósia e ladrilhos, quem sabe ali estivéssemos
também você e eu, meu amor, sete palmos abaixo naquela terra
escura, que se adubava sabe lá como, mas que estava apenas
descansando, depois eu descobri, aquela terra inerte de onde eu
imaginava mal brotaria uma orquídea, quanto menos as raízes de um
novo amor.
(*)
Cronista
e editor do site www.narizdecera.jor.br.
Vive atualmente na Inglaterra, dedicando-se a pesquisas no Institute
for the Studies of the Americas, da Universidade de Londres. Autor do
livro-reportagem “Venezuela: A Encruzilhada de Hugo Chávez” (Ed.
Globo,
2003), menção honrosa no prêmio Vladimir Herzog 2004.
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