domingo, 29 de outubro de 2017

Sujeito Zero (17)

* Por Sergio Vilas Boas


Subindo a Rua C, o reflexo luzidio de um carro que faz a volta na outra esquina distorce a sombra de Seu Edmundo no muro. À medida que a rua aplana, ele tenta forçar o passo. Faz uma semana que se desligou da Fazenda Futura e voltou. Atinge o portão de entrada da casa de fundos e penetra pelo corredor de acesso como um fan­tasma. Não sofre de pânico mas parece o vampiro diante do crucifixo.

Carmem e Alfredo, locadores da casa de fundos em que Seu Edmundo morou, estão às gargalhadas diante da tevê. Significa que o vulto de Seu Edmundo pode ser visto e isto é tudo o que ele não deseja que aconteça. As cores da tevê convertem as vidraças da porta de correr em um prisma. Seu Edmundo pretende passar despercebido.

Mas uma arrancada brusca repuxa-lhe o peito, pungindo-o bem no lado esquerdo. Dobra-se de dor e fica à mostra através da porta de vidro. Custa a sintonizar tempo e espaço. A luz do corredor foi acesa. Segue-se então um ruído penetrante de ferro com ferro, ecoando agudos que o arrepiam.

O indesejável se impõe.
- Seu Edmundo, o senhor está bem? (Pergunta Carmem).
Seu Edmundo recobra os sentidos aos poucos. Já pode ver Carmem nitidamente. Ela usa um lenço na cabeça e uma blusa cigana suspensa por duas tiras finas nas extremidades dos ombros.
- Alfredo, vem cá. (Carmem grita).

Agora ele pode ao menos tirar a mão do peito. A testa ensopou. Carmem a enxuga com o lenço que Seu Edmundo costumava trazer embolado no bolso da camisa. Ele abre um sorriso fácil, antes que Alfredo também apareça, o que não demora a ocorrer.

- Tive uma tonteira de repente, mas já estou bom.- Tonteira não é normal, Seu Edmundo. (Carmem espeta).
- Tem tido isso sempre? (Intromete-se Alfredo).

É exposição demais para um recluso que detestava, por exemplo, ser visto fazendo a barba; e que “fugiu” da Fazenda Futura levando consigo o diagnóstico “bronquite tabágica”, feito pela médica negligente de Catas Altas.
- Também, olha, do jeito que o senhor fumou na vida... (Assim, Alfredo o ofende).

Carmem desvia a conversa. Pergunta se Seu Edmundo quer um pouco de água. Não. Antes de entrar, pois não podia perder o programa da Hebe Camargo, ela reforça que se ele precisar de alguma coisa é só tocar a campainha. Alfredo então fica à vontade para abordar seu inquilino. Uma oportunidade de ouro, única.
- Seu Edmundo, é muito oportuna a sua aparição aqui, agora, mesmo em circunstâncias tão desagradáveis. Olha, sua saúde não parece nada boa. Eu não gosto de falar certas coisas com o senhor porque sei o ho­mem sério que o senhor é. Além do mais, mora no meu imóvel há muito tempo e... O que foi, tonteira de novo?
- Não.
- Então. Desde que o senhor voltou da tal Fazenda que estou pra lhe comunicar uma coisa...
- Alfredo, por favor...
- Eu sei, eu sei. O senhor adora aqui, o meu imóvel, o bairro, os vizinhos, eu entendo. Sua filha Alma fez questão de lhe garantir o aluguel mesmo quando o senhor esteve internado.
- Alfredo, deixa isso pra depois. (A voz de Carmem vem lá de dentro).
- Não se mete, Carmem. (Retruca o machão)

Uma conversa como esta, naquele momento, era tão desagradável quanto queimar a língua com uma xícara muito desejada de café quente.
- O que quero dizer, Seu Edmundo, é que Alma não me pagou os últimos três meses do aluguel.Uma centelha de dignidade se acende em Seu Edmundo, apesar do medo de parecer suspeito.
- Eu mesmo vou lhe pagar os atrasados amanhã. (Mente, pois está sem um centavo).

Mas é o que Alfredo esperava ouvir. Além de tudo, uma forma de evitar que Carmem insista em defendê-lo e em seguida seja massacrada verbalmente pelo marido, como era costume.
- Sou um dos sujeitos mais solidários deste bairro. Mas o aluguel, esse não tem jeito. Além do mais, não posso mais segurar o valor que Alma está me pagando. Temos que reajustar.

Alfredo tem trejeitos de ator, embora não passe de um barrigudo disfarçado. Em casa, está sempre usando camiseta de esportista, short estrangu­lando os testículos e um tênis de couro preto, apropriado à prática do futebol de salão. Ele ara o cabelo sebento com as pontas dos dedos pela décima vez. Enche os ombros de caspa. Depois corrige o repartido, voltando ao aspecto de homem ma­duro, precocemente grisalho.
- E acho também que a gente não precisa ficar escondendo um do outro, não é mesmo?- Claro que não. Até mais, Alfredo.

Seu Edmundo segue o corredor iluminado pelas luzes da sala de Alfredo, onde Carmem não presta atenção ao que a tevê não diz. Os olhos de Seu Edmundo disparam fagulhas em desvairada pirotecnia.

À virada do corredor da morte, a escuridão; há apenas um pequeno feixe de luz suficiente para iluminar os sapatos Vulcabrás e orientar a descida dos três degraus até a casa de fundos.
- A gente voltará a falar no assunto. (Brada Alfredo, às costas de Seu Edmundo).

Mais alguns passos e ele está na porta de sua caverna. Não precisa acender a arande­la ao lado. Está acostumado a abri-la no escuro mesmo. A noite clara e seca facilita a operação. Destranca a portae acende a luz da sala. O camaleão co-morador rapida­mente se esconde atrás do auto-retrato de Seu Edmundo, desenhado por um sujeito que, num bar qualquer, anos atrás, compartilhou com ele aperitivos e cigarros sem filtro.

Liga a tevê. Na geladeira há bastante água fria para regar a garganta em uma noite quente. A casa de fundos é uma fornalha no verão. Fechada e exposta ao sol o dia todo, se transforma em uma estufa à noite. Não fosse a turbina de seu barulhento circulador de ar, seria impossível passar uma noite inteira ali dentro sem derreter. Mas ele gostava.Enquanto desabotoa a camisa, segue com os olhos a fileira de formigas em mar­cha rumo à nesga do portal. Bem no cantinho da porta, vê correspondências, em torno das quais as formigas estão fazendo meia-volta. Atira a camisa longe, deixa a calça escorrer pelas pernas.

De cueca samba-canção branca com bolinhas azuis-marinhos, um pé envolvido em meia marrom, o outro descalço, Seu Edmundo volta à sala segurando os folhetos que irão para o lixo. Encosta a cabeça na poltrona, aquieta a papelada sobre o colo. Olha o teto e pensa uma porção de coisas aleatórias.

As solu­ções já dependem exclusivamente de sua vontade, o que aumenta o risco de desconfortos. Ao final da vida, Seu Edmundo dependia de carinho e finanças para sobreviver. Conseguiu aposentar-se por idade e tempo de serviço, mas isto só lhe rendia um salário-mínimo mensal, ou seja, metade do valor do aluguel. Ele precisava de Alma.

Aquele homem foi de uma dignidade acima da média. Nunca foi o tipo carente que cobra atenção dos outros o tempo todo. Gente assim parece coiote faminto, insaciável, nada basta. Meu pai, não. Ao contrário, tudo lhe bastava. Ele lutou pela vida com armas muito especiais. O silêncio era apenas uma delas.

* Jornalista, escritor e professor. Editor do portal TextoVivo Narrativas da Vida Real (www.textovivo.com.br); vice-presidente da Academia Brasileira de Jornalismo Literário (ABJL). Autor de Os Estrangeiros do Trem N (1997), Biografias & Biógrafos (2002) e Perfis (2003), entre outros. E-mail: svilasboas@textovivo.com.br.


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