domingo, 22 de outubro de 2017

A presença do bacharel na vida brasileira

* Por Alberto Venâncio Filho

A presença do bacharel em Direito é uma constante na vida brasileira. No início da colonização, as primeiras expedições portuguesas já encontraram em São Vicente o bacharel de Cananéia. Por outro lado, o tipo de ensino colonial, de caráter eminentemente literário e retórico, iria colocar em posição de prestígio o bacharel em Artes, saído dos colégios dos jesuítas, que constituiria, inclusive, base da formação do bacharel em Direito. Na administração colonial, encontrar-se-á em situação de destaque o bacharel como um dos elementos de que dispunha a Metrópole para a manutenção do seu poder colonizador. Este tipo de administração, de caráter fiscalista e eminentemente formal, se desinteressava por completo pelo desenvolvimento das atividades econômicas. Quando aparece uma atividade de monta, como foi o caso da mineração, a exploração era de caráter predatório, interessada a Metrópole em retirar da Colônia o máximo de recursos. Veja-se o comentário de Eschwege:
Na realidade, entregou-se um tesouro a ignorantes que não sabiam preservá-lo e a juristas, que nada fizeram senão estabelecer medidas legais inoportunas. Nem estes nem aqueles foram capazes de propor medidas adequadas, pois nem sequer percebiam que elas existiam.
À medida que a sociedade se desenvolvia e que ganhavam densidade outras atividades econômicas, passa a surgir uma classe de letrados, em grande número bacharéis em leis que obtiveram em Coimbra, e em alguns casos, em outras universidades européias, a sua formação intelectual. O prestígio dessa geração não se exerce apenas na Colônia, mas alcança a Metrópole, onde, na segunda metade do século XVIII, são brasileiros os ocupantes de muitos dos principais cargos da administração portuguesa. É também no seio desse grupo que surge o movimento pela Independência, e por isso pôde, com justeza, dizer Gilberto Freire que a Inconfidência Mineira foi uma revolução de bacharéis - pelo menos de clérigos que eram antes bacharéis de batina do que mesmo padres, alguns educados em Olinda, no Seminário liberal de Azeredo Coutinho, em todos os principais ramos da literatura, própria não só de um eclesiástico, mas também de um cidadão que se propõe a servir o Estado - como foram as duas revoluções pernambucanas preparadas por homens também do século XVIII: a de 1817 e a de 1824.
Esta geração se imbuíra também, nos seus estudos europeus, dos princípios do "enciclopedismo francês". Estavam impregnados daquele liberalismo que precedeu à Revolução Francesa. Mesmo os que terminavam seus estudos na Colônia, recebiam este influxo através da leitura dos livros franceses. É o exemplo do Cônego Luís Vieira da Silva, graduado pelo Seminário de Mariana, em Filosofia e em Teologia Moral, no Colégio dos Jesuítas em São Paulo, que tinha, na sua biblioteca, toda a gama desses pensadores.
Quando da transmigração da família real portuguesa para o Brasil, virá desempenhar papel de singular destaque um bacharel de gênio, José da Silva Lisboa, Barão, e, depois, Visconde de Cairu. Para San Tiago Dantas,
ele (Cairu) nos aparecerá na galeria dos nossos patriarcas como o espírito mais consciente dos problemas econômicos do seu tempo e como arquiteto de algumas de suas mais felizes soluções.
Bacharel em Cânones, em Direito Canônico e Matemática pela Universidade de Coimbra, retorna ao Brasil para ser professor de Grego e Hebraico no Real Colégio das Artes de Salvador. Mas sob o influxo das idéias de Hume e do livro Ensaios sobre a Riqueza das Nações, de Adam Smith, se volta para a análise dos estudos econômicos. Em 1789 aparece o seu primeiro livro, a parte de seguro marítimo, dos Princípios de Direito Mercantil. E, logo em seguida, em 1804, o Princípios da Economia Política. Por ocasião da chegada da família real na Bahia, é o responsável pela grande medida da abertura dos portos, com a qual a sociedade brasileira rompe o regime de clausura em que até então vivia, para se integrar nas grandes correntes do comércio internacional. Afirmou, pois, com justeza, San Tiago Dantas que o que caracterizou a sociedade brasileira na passagem do século XVIII para o XIX foi justamente a presença de uma elite, pequena, mas dotada de invulgar capacidade, que apenas dependia para liderar o país, de conseguir levar sua influência até o trono e ter acesso aos círculos superiores da administração.
Foi, exatamente, esta geração a responsável pelo movimento da Independência e que mais tarde está presente na Assembléia Constituinte. Participa Cairu do Conselho de Estado que prepara a Constituição de 1824, este admirável monumento de construção jurídica, e, na Assembléia Legislativa de 1826, retoma a idéia de Fernandes Pinheiro, para criar, em 11 de agosto de 1827, os cursos jurídicos de São Paulo e Olinda.
Phaelante da Câmara aproxima a data da criação dos cursos jurídicos à derrota das armas brasileiras nos campos de Ituzaingó, defronte da Ilha de Martim Garcia. E explica:
E não é sem propósito que acentuo esta coincidência. Segundo Armitage, aqueles insucessos produziram os mais satisfatórios efeitos na ordem civil, desanimando as vocações militares e abrindo as portas às outras carreiras, às gerações novas, tal como se deu em nossos dias, após o desastre emocionante de Canudos. A medida estava, portanto, de acordo com a sucessão dos acontecimentos da psicologia nacional. Realçando ainda mais o fato de terem sido escolhidos para servir de sede aos prometedores centros intelectuais, duas cidades em evidência - a de São Paulo - célebre pelo Grito do Ipiranga e pelo renome dos Andradas - e de Olinda, viveiro de patriotas onde na religião do martírio a mocidade brasileira viria também a aprender a liturgia do civismo.
Os cursos jurídicos foram, assim, no Império, o celeiro dos elementos encaminhados às carreiras jurídicas, à magistratura, à advocacia, e ao Ministério Público, à política, à diplomacia, espraiando-se também em áreas afins na época, como a filosofia, a literatura, a poesia, a ficção, as artes e o pensamento social. Constituíram, sobretudo, a pepineira da elite política que nos conduziu durante o Império. Numa frase muitas vezes citada, e algumas vezes deturpada, disse Joaquim Nabuco que "já então (décadas de 1840 e 1850) as faculdades de Direito eram ante-salas da Câmara". E prosseguia:
Na Inglaterra, as associações de estudantes discutem as grandes questões políticas, votam moções de confiança, destroem administrações, como fazem o parlamento. Gladstone nunca tomou mais a sério os grandes debates da Câmara dos Comuns do que os União de Oxford, quando propunha votos de censura ao Governo de Wellington ou ao de lord Grey. Em Olinda, não havia esse simulacro de parlamento em que se formam os estudantes ingleses; os acadêmicos exercitavam-se para a política em folhas volantes que fundavam.
Comentando a posição de bacharel, afirma Gilberto Freire que o prestígio do título de "bacharel" e "doutor" veio crescendo nos meios urbanos e mesmo nos rústicos desde o começo do Império. Nos jornais, notícias e avisos sobre "Bacharéis formados", "Doutores" e até "Senhores Estudantes", principiaram desde os primeiros anos do século XIX a anunciar o novo poder aristocrático que se levantava, envolvido nas suas sobrecasacas e nas suas becas de seda preta, que nos bacharéis - ministros, ou nos doutores - desembargadores, tornavam-se becas "ricamente bordadas e importadas do Oriente". Vestes quase de mandarins. Trajos quase de
casta.
(Das arcadas ao bacharelismo, 1977).


* Jurista, professor e historiador, membro da Academia Brasileira de Letras.


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