Fiado
só para maiores de 90 anos e acompanhados dos pais
* Por
Gustavo do Carmo
Pendurado
na parede mais próxima do caixa, o quadro com moldura de madeira e
vidro que protegia o papel A4, impresso por jato de tinta, com fonte
Impact e o desenho de um idoso importado do ClipArt dizia: FIADO SÓ
PARA MAIORES DE 90 ANOS E ACOMPANHADO DOS PAIS.
Seu
Joaquim não aguentava mais as pessoas pedindo para comprar fiado em
seu bar. Já vendeu muito no passado, mas ninguém pagava e ficou com
um prejuízo que quase o fez fechar o estabelecimento e voltar para
Portugal.
Cansado
de tanta insistência, pediu para o filho adolescente redigir o aviso
no computador, imprimir e depois emoldurá-lo na vidraçaria de um
amigo seu. Muito honesto, fazia questão de pagar ao vidraceiro, que
era freguês do seu bar.
Um
dia, apareceu um senhor barrigudo e calvo, com ralos cabelos
grisalhos na nuca, aparentando uns sessenta anos. Ele pediu um
refrigerante para se refrescar naquele calor infernal do subúrbio do
Rio de Janeiro. Terminada a bebida, pagou normalmente com uma nota de
50 reais. Enquanto esperava o troco, deu de cara com o aviso. Riu
sozinho. Pegou o troco e foi embora.
Três
meses depois, já no outono, com o clima mais fresco, entrou um
idoso, aparentando noventa anos, se apoiando em uma bengala, que
pediu um joelho de queijo e presunto com mate.
Depois
de comer, procurou Seu Joaquim e pediu:
—
Posso
pendurar a conta?
Indignado,
o velho português deixou a cortesia de lado e gritou, apontando para
o quadro:
—
Olha
o cartaz! Só vendo para maiores de 90 anos acompanhados dos pais.
—
Bom.
Eu tenho noventa anos. Está aqui a minha identidade.
—
Mas
é lógico que os seus pais já faleceram, não é? Então não tem
fiado.
Logo
depois entrou aquele mesmo freguês de sessenta anos do verão, agora
segurando duas cadeiras de rodas. Em cada uma repousava um casal, já
bem senil e delirante.
—
Pai!
Fez o lanche? Vamos pra casa que os meus avós estão precisando
tomar banho.
—
Fiz
sim. Antes, me deixa apresentá-los ao dono do bar. — Olha aqui,
senhor: estes aqui são os meus pais. O Seu Jerônimo tem 120 e a
Dona Mariquinha 115. Posso pagar fiado, né?
Os
outros frequentadores do bar caíram na gargalhada. Surpreso e sem
graça de inventar outra desculpa, Seu Joaquim deu o lanche de graça
para o idoso.
—
Ora,
pois! Não precisas
pagar. É uma cortesia.
—
Não.
Eu pago com o maior prazer. Estava só brincando.
—
Então
paga depois. Se não voltares
ficas como cortesia.
—
Tudo
bem, obrigado.
Seis
meses depois, o senhor de sessenta anos, novamente sozinho, retornou
ao bar para pagar a dívida do pai, que já falecera.
—
Ó,
está aqui o pagamento daquele lanche do meu pai. Infelizmente, ele
já se foi. Mas os meus avós continuam vivinhos. Hoje mesmo é
aniversário do meu avô, que está fazendo 121. Vamos fazer um
churrasco e você está convidado.
Seu
Joaquim aceitou o dinheiro, agradeceu o convite, sorriu e atendeu
outro freguês depois que o senhor foi embora. Na semana seguinte
estava pendurado um novo cartaz:
FIADO
SÓ PARA MAIORES DE 120 ANOS E ACOMPANHADOS DOS AVÓS.
*
Jornalista e publicitário de formação e escritor de coração.
Publicou o romance “Notícias que Marcam” pela Giz Editorial (de
São Paulo-SP) e a coletânea “Indecisos - Entre outros contos”.
Bookess
- http://www.bookess.com/read/4103-indecisos-entre-outros-contos/ e
PerSe
-http://www.perse.com.br/novoprojetoperse/WF2_BookDetails.aspx?filesFolder=N1383616386310
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