quinta-feira, 17 de agosto de 2017

Renascimento diário



* Por Pedro J. Bondaczuk



O homem, sem que o perceba ou se dê conta, morre a cada dia para em seguida renascer. Daí não ser tão mitológico assim o mito da fênix, aquela ave egípcia que renasceria de suas próprias cinzas. A cada dia, somos os mesmos e no entanto somos um outro.

Todas as células do organismo, sejam de que tecido forem, se "autocopiam", através da reprodução, passando para as sucessoras todas as informações de que dispunham. A cada manhã, portanto, somos pessoas renovadas, inclusive do ponto de vista físico. Em termos mentais, nem se diga. Mudamos a cada instante. E infeliz daquele que não muda nunca, que se aferra a dogmas, a comportamentos superados pelo tempo, a maneiras arcaicas de pensar e de agir.

Ninguém "renasce" das próprias cinzas com maior intensidade e força do que o artista e, mais ainda, do que o poeta. O filósofo francês Gaston Bachelard, no livro "Fragmentos de uma poética do fogo", sentencia: "Sem a ajuda do mito antigo, a fênix renasce sem parar nos poemas. A fênix é um arquétipo de todos os tempos. É um fogo vívido, pois não se sabe jamais se adquire seu sentido nas imagens do mundo exterior ou sua força no fogo do coração humano".

Essa ave mitológica chega a ser emblemática em minha vida. Além do renascimento diário biológico, supracitado, tenho em minha experiência pessoal de quase 75 anos de existência outros: o social, o moral, o profissional, o psicológico, o artístico etc.

Foram inúmeras as vezes em que estive em situações tão difíceis a ponto de parecer irremediavelmente batido, virtualmente morto para o mundo e para a sociedade. No entanto, ou por méritos próprios – sempre contando com a providencial ajuda alheia – ou em decorrência do acaso, "renasci" inesperadamente.

Por exemplo, quando fiquei paralítico, fui rejeitado pela própria família, que não se conformava em ver uma criança bonita e sadia da noite para o dia ficar deformada e sem capacidade de locomoção própria. Foram inúmeras as ocasiões em que desejei até mesmo morrer, inconformado com aquela condição que julgava injusta. Claro que guardava para mim mesmo essas emoções tão amargas. Face aos outros, procurava comportar-me como se a doença não tivesse abatido o meu ânimo. Mas abatera.

Todas as vezes em que via outros meninos jogando bola, correndo, saltando, empinando papagaio e fazendo tudo o que eu não podia fazer, tinha uma vontade imensa de chorar. Mas engolia o choro e fazia uma cara alegre, ou de um bobão que não tivesse consciência das limitações. Claro que tinha!

Não se tratava de inveja. Era a revolta compreensível de uma criança saudável e inteligente, inconformada com uma "punição" por alguma coisa que não havia feito. E no entanto, superei essa fase. Aprendi a andar, a fazer praticamente tudo o que as outras pessoas fazem, a ser autossuficiente. Consegui enxergar além da condição física, do aspecto antiestético, dos preconceitos sociais.

Tive a felicidade de contar com oportunidades. Algumas, agarrei com unhas e dentes e mudei meu destino. Outras, por imaturidade, deixei escapar por entre os dedos. Renasci das minhas próprias cinzas e consegui me aceitar do jeito que sou, embora não encontrasse a mesma aceitação em todos os ambientes em que estive.

Por isso, o mito da fênix me é emblemático. Por uma dessas coincidências que quando ocorrem nos deixam em dúvida a respeito da existência ou não de um determinismo em nossa vida, fui admitido em uma instituição que tem nessa ave mitológica o seu símbolo: a Academia Campinense de Letras.

Não bastasse isso, fui honrado com um título de cidadania, por parte da Câmara Municipal de Campinas. Tornei-me cidadão campineiro por lei, já que por nascimento não me foi possível. Já o era, na verdade, por opção, pelo coração, através da emoção, do amor que nutria por esta comunidade e sua gente, embora não fosse reconhecido como tal.

Pois bem, o brasão da cidade tem exatamente a fênix renascendo das cinzas, como esta metrópole renasceu, após o surto de febre amarela de meados do século XIX, que dizimou quase toda a sua população. Profissionalmente, foram inúmeras as ocasiões em que "caí em desgraça" diante de determinadas chefias, que me puseram no ostracismo.

Não foram poucas as vezes em que me consideraram ultrapassado e estive a pique de ter a carreira seccionada abruptamente, até por uma questão de preconceito. Mas, invariavelmente, passado um determinado tempo de "inferno astral", ressurgi das cinzas, até para a minha surpresa.

É certo que vai chegar o momento em que não poderei mais "renascer". Será quando a morte puser fim aos meus dias sobre a Terra e encerrar esta maravilhosa aventura, que aprendi a amar com tamanha intensidade, que é a vida.

Só peço a Deus que quando isso ocorrer, aconteça o "renascimento" pelo qual mais luto e me empenho: o da memória. O da lembrança das gerações futuras de que existi, sofri, lutei, tive sucessos, sofri derrotas, acalentei esperanças e experimentei amarguras. Mas que se lembrem que perseverei, que tive fé, que construí esperanças, que engoli frustrações e que, sobretudo, sempre tive disposição para recomeçar…


* Jornalista, radialista e escritor. Trabalhou na Rádio Educadora de Campinas (atual Bandeirantes Campinas), em 1981 e 1982. Foi editor do Diário do Povo e do Correio Popular onde, entre outras funções, foi crítico de arte. Em equipe, ganhou o Prêmio Esso de 1997, no Correio Popular. Autor dos livros “Por uma nova utopia” (ensaios políticos) e “Quadros de Natal” (contos), além de “Lance Fatal” (contos), “Cronos & Narciso” (crônicas), “Antologia” – maio de 1991 a maio de 1996. Publicações da Academia Campinense de Letras nº 49 (edição comemorativa do 40º aniversário), página 74 e “Antologia” – maio de 1996 a maio de 2001. Publicações da Academia Campinense de Letras nº 53, página 54. Blog “O Escrevinhador” – http://pedrobondaczuk.blogspot.com. Twitter:@bondaczuk



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