Do
pau oco
* Por
Marcelo Sguassábia
Já não
foi a primeira vez que a câmera de segurança da fábrica de santos
e anjos de gesso flagrou o inspetor de controle de qualidade e uma
loiraça gesseira, toda coberta de pó branco, fazendo o que estava
no Gênesis em posição ainda não catalogada pelo Kama Sutra.
Espionando diariamente os dois excomungados, em serões que se
estendiam das seis e quinze da tarde às nove e tanto da noite,
Genaro, do serviço terceirizado de circuito de TV, junta mais um
flagrante ao gordo dossiê e aguarda o momento certo: a nomeação do
inspetor a gerente, “pela conduta irrepreensível no exercício de
suas funções”.
Temos
em estoque e para pronta entrega ampla gama de bolas de cristal nos
diâmetros de 9 a 25 polegadas, com ou sem efeitos
luminosos, estrelas e luas holográficas, 100% transparentes e com
mecanismo giratório discretamente acoplado debaixo da mesa do
vidente. Funcionam com quatro pilhas, não inclusas. Mas tome
cuidado para que os clientes não vejam o “Nadir Figueiredo” na
base da bola, fatal indicativo de que a mesma não é exatamente de
cristal.
O que
se observa é o que podemos chamar literalmente de círculo vicioso.
O fabricante do baralho dissemina, querendo ou não, a maldição do
jogo. Perdendo o que tinham e o que não tinham nas mesas de pano
verde, os desesperados procuraram uma saída com as videntes do
tarô, cujas cartas são fabricadas pelo mesma empresa do baralho. É
ganho na diversão e no arrependimento. A coisa toma outro rumo nos
tempos de bonança econômica. É quando pouca gente joga e
consequentemente quase ninguém corre depois atrás do tarô. Aí o
jeito é alocar o parque fabril à produção de baralhos de mico
preto, para as raríssimas crianças que se dispõem a trocar o
Playstation 4 por esse passatempo idiota.
Se
existe alguém que mereça respeito e medo nesse mundo, esse alguém
é o dono da fábrica de patuás. Por maiores que sejam seus
calotes, desvarios administrativos, apropriação indevida de verbas
trabalhistas, ninguém quer correr o risco de uma maldição ou
“coisa feita” em represália. Eassim, entre falcatruas mil
e respeito nenhum a quem quer que seja - funcionários,
fornecedores, leis e poderes constituídos - , ele amplia mês a mês
o volume produzido e diversifica o seu mix, que já inclui figas de
madeira de reflorestamento e galhinhos de arruda cultivados em
hortas hidropônicas.
Novas
seitas pululam descontroladamente, fora do alcance da razão e
sobretudo do fisco em suas instâncias diversas. Com elas surgem
inovações tecnológicas que jamais passaram pela cabeça de
Matuzalém, Barnabé, Zebedeu e seus contemporâneos, como a
maquininha coletora de donativos por transferência de titularidade,
ou seja, basta que o fiel insira o cartão de crédito ou débito
para assegurar em suaves parcelinhas o seu pedaço de céu.
*
Marcelo
Sguassábia é redator publicitário. Blogs:
WWW.consoantesreticentes.blogspot.com (Crônicas e Contos) e
WWW.letraeme.blogspot.com (portfólio).
Ficou tudo mais fácil com a maquininha de esmolas, ou "transferência de titularidade". Sobre a fábrica de santos (do pau oco), destaco as feitanças do inspetor e o merecido prêmio: “pela conduta irrepreensível no exercício de suas funções”. Boas, Marcelo!
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