quarta-feira, 16 de agosto de 2017

O Miguel de Cervantes de Maria Augusta Vieira

* Por Mara Narciso
 
Como admiradora da Literatura corri a sorver a palestra de Maria Augusta Vieira sobre Miguel de Cervantes e Dom Quixote de La Mancha. Aconteceu no Clube de Leitura Ateliê Galeria Felicidade Patrocínio, parceiro da Academia Feminina de Letras, cuja presidente Ângela Vera Tupinambá Castro trouxe a palestrante de São Paulo.
 
Admirável e cheia de títulos, Maria Augusta é uma mulher de voz macia e modéstia exuberante, sendo possuidora de mestrado e doutorado em Literatura Espanhola. Dedicou amplos estudos a Miguel de Cervantes, o maior ás da Literatura Mundial, autor que leu tudo o que havia em seu tempo e escreveu o mais imortal de todos os livros, obra que provoca reuniões como esta, 400 anos depois.
 
Maria Augusta, que considerou a nosso encontro algo “cervantino”, explicou que na época de Cervantes eram comuns reuniões literárias chamadas tertúlias, que aconteciam em tabernas, nas quais o escritor lia em voz alta seu escrito, enquanto os demais opinavam. Não havia a intenção de ser criativo, pois a cópia estava na moda, mas Cervantes inventou uma nova forma de narrar.
 
O escritor não era nobre, numa época em que usar as mãos para produzir era desabonador, e aos nobres era proibido trabalhar. Por sua vez, o lazer contava com jogos de cartas, vinhos, teatro, música e literatura na Península Ibérica, que vivia uma ebulição cultural de viagens e livros, num momento de riqueza dada pelo ouro e prata trazidos das colônias na América.
 
Cervantes escreveu Dom Quixote de La Mancha, de mil páginas, em duas partes, sendo a primeira publicada em 1605 e a segunda dez anos depois. Não teve apoio financeiro, numa época em que as publicações só saíam após autorização da Coroa. Esta normatizava temas a abordar, num movimento conhecido como Contrarreforma, que tinha assuntos proibidos.
 
O protagonista Dom Quixote, fidalgo e cavaleiro andante, numa paródia aos romances de cavalaria, passeia mundo afora, dialogando com as novelas campesinas e picarescas. O autor fala dos conhecimentos de então, passando pela Astronomia, guerras, viagens, costumes de países, utilizando palavras de cada área, mas, numa linguagem acessível, mostrando um fácil entabular de conversa entre a Literatura erudita e a popular.
 
Dom Quixote e seu fiel escudeiro Sancho Pança vivem histórias que ora contam, ora ouvem. Acontece uma conversa entre dois mundos opostos representados pelo intelectual Dom Quixote e o tosco Sancho Pança. Mesmo iletrado, o escudeiro tem sabedoria popular, e, diferentes em tudo, convergem no diálogo. Ambos os personagens trazem a dualidade em si, com um Dom Quixote louco e lúcido, e um Sancho Pança rude e sábio.
 
A obra expõe o mundo social da época, com humanismo, dando voz aos grupos humanos, ousando nos experimentos narrativos e psicológicos. A vida da pastora Marcela tem leves pitadas feministas, com um Cervantes mostrando a posição da mulher na sociedade. Nela, um pastor se apaixona por Marcela, que não quer se casar, e sim, viver livre pelos campos. O moço rejeitado morre, não ficando claro se se suicidou, ou não.
 
Noutra história, uma mulher virtuosa é colocada à prova duas vezes. Tudo combinado entre seu marido e um amigo, a mulher acaba não resistindo aos encantos do intruso. Na primeira viagem do marido, a mulher resiste, mas ele se afasta novamente. Desta vez a esposa cai em tentação, ainda que em pensamento, mostrando que o ser humano de bem tem limites. Devido às habilidades literárias e sutilezas do autor a personagem adúltera é perdoada pelo leitor.
 
Noutra narrativa uma personagem feminina mostra falta de sabedoria em viver, sugerindo misoginia de Cervantes ao colocá-la inábil em escolher com quem se casar, vivendo em constantes apuros.
 
Cervantes sustentava mulheres suas parentes e teve vida pobre, mas não tão miserável quanto a pintam”, explicou a palestrante, que, além de destacar as personagens femininas, estimulou a leitura da obra na língua original.
 
À medida que nos dirigia sua retórica melodiosa, de expressões catadas num rico manancial, foi levando os cerca de 80 ouvintes ao intrigante Dom Quixote de La Mancha, sua viagem, histórias e paixões. Nutridos pela força de suas palavras, após a imersão de duas horas, poderíamos, sem medo, enfrentar nossos moinhos de vento.

* Médica endocrinologista, jornalista profissional, membro da Academia Feminina de Letras e do Instituto Histórico e Geográfico, ambos de Montes Claros e autora do livro “Segurando a Hiperatividade”



Um comentário:

  1. É como você diz: já são passados 400 anos, e esse monumento ainda provoca debates, teses, ensaios, elucubrações filosóficas as mais diversas... Obra eterna.

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