quinta-feira, 17 de agosto de 2017

A leitura do corpo


* Por Harry Wiese


Quando eu era criança ler tinha um significado só e significava decifrar a escrita. Quem não conseguia tal façanha era chamado de analfabeto. Hoje, ler possui um leque de significados, que nos permite interpretar e entender melhor o que nos rodeia, o que somos e como assimilamos as diversas modalidades de textos. Somos texto. As pessoas são textos, portanto, podem ser lidas.

O cronista Affonso Romano de Sant'Anna disse que tudo é leitura. O corpo é um texto e que tudo é decifração, portanto, conclui-se que o corpo é um texto e pode ser decifrado.

Existem estudos avançados sobre a corporeidade. Hugo Assmann é uma dessas personalidades. “Metáforas novas para reencantar a educação” é uma obra que não deveria faltar na lista de leituras de professores e educadores. Corporeidade é a maneira pela qual o cérebro reconhece e utiliza o corpo como instrumento relacional com o mundo.

Se meu corpo é texto eu me leio. Leio-me por dentro e por fora, cada detalhe, cada atitude, cada célula, cada pensamento. Penso, logo leio! A leitura do corpo é a existência, Descartes que o diga!

A primeira leitura do corpo compete à mãe. É ela que lê os movimentos do feto, suas manias e artimanhas, a vida. Não lê com os olhos, lê com o corpo o filho se formando dentro dela.

Depois com a criança nascida, ela a lê nos mínimos detalhes, parte por parte, órgão por órgão e descobre o primeiro sorriso, a alegria, a tristeza, a fome, a satisfação e o amor. Mães são exímias leitoras do corpo.

O pediatra lê o corpo de jeito superior. Lê a dor e o alívio da dor das crianças e das mães das crianças. Pediatras são como anjos da guarda em noites de tempestades turbulentas.

Os professores leem o corpo de seus alunos. Cada aluno é um texto exclusivo. A leitura dos corpos dos alunos permite ler o mundo de cada um deles: a família, a comunidade, as crenças, as necessidades e as diferenças. Leem, principalmente, as ausências, a índole e os sonhos. Ler sonhos é essencial. Ninguém pode ser menor que os sonhos, disse o poeta.

O psicólogo lê o corpo por dentro. Lê o que não vê. Vê o corpo e lê a alma. Psicólogos são como aves noturnas, silenciosas e eficientes na leitura de seus caminhos. Freud era exímio leitor de almas através de sua psicanálise. Ele disse: “Existem momentos na vida da gente, em que as palavras perdem o sentido ou parecem inúteis, e, por mais que a gente pense em uma forma de empregá-las elas parecem não servir. Então a gente não diz, apenas sente”.

Afagos entre mães e filhos e carícias entre amantes são leituras como em Braille, com suas depressões e seus altos-relevos, descartam palavras, para que palavras, se o texto são os corpos.

Médicos são eficientes leitores de corpos. São especialistas nesse tipo de leitura. Desde Hipócrates, o pai da medicina, os médicos leem os complicados predicados corporais para conseguir o bem-estar da humanidade. Médicos deveriam ter existência infinita.

O médico-legista faz a leitura do corpo morto. Não sorri como o pediatra. Faz a leitura da causa última. As causas-mortis são inúteis e só servem para documentos, que também são inúteis. A inutilidade dos corpos se manifesta em suas decomposições irreversíveis.

Mesmo assim, há ainda a leitura do corpo morto, frio, sem alma, o último olhar, a despedida. A imagem perdura na mente das pessoas ainda por algum tempo e a cada dia que passa corrói e definha. A lápide de mármore é o limite e encerra a leitura do corpo. Permanece a saudade... que não pode ser lida!


* Harry Wiese é escritor que reside em Ibirama - SC. É autor de vários livros, dentre eles A sétima caverna, romance premiado pela Academia Catarinense de Letras.



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