Nossa
Senhora Visitadora
* Por
Urda Alice Klueger
Quem
tem 50 anos se lembra; quem não tem 50 anos, provavelmente nunca
ouviu falar. Vou contar, hoje, de uma tradição que existia lá no
começo dos anos sessenta: a de Nossa Senhora Visitadora.
A
rua Antonio Zendron, em Blumenau, onde cresci, na época já era uma
rua muito extensa, com muitos moradores. Não tinha as feições de
hoje, com loteamentos e condomínios se emendando – era uma rua
calma, com pequenos grupos de casas separadas por grandes pastos onde
pastavam mansas vacas holandesas, rua habitada por católicos e
luteranos mais ou menos em mesmo número, mas onde, com toda a
força, a exemplo da maioria das ruas daquela época, Nossa Senhora
Visitadora fazia o maior sucesso.
Considerando
o tamanho da rua, faço as contas e tento imaginar quanto tempo
levava Nossa Senhora para visitar todos os moradores; com certeza, a
volta inteira demorava anos. Esses cálculos, porém, não importam.
O que importa era a emoção de beleza que vinha com as visitas de
Nossa Senhora.
Ela
ficava uma semana em cada casa. Creio que era nas noites de sábado
que Nossa Senhora migrava para a casa seguinte; como havia os grandes
pastos entre as casas, às vezes a procissão que transportava a
imagem de Nossa Senhora de uma casa para a outra era extensa, e
sempre linda, com todos com velas acesas nas mãos a cantar canções
marianas, as crianças na maior expectativa a espiar como a cera das
velas formava estranhas esculturas acima das suas mãos.
Aí
se chegava à nova casa que Nossa Senhora ia visitar, e, ah! Sempre
havia uma surpresa! Dependendo da situação econômica de cada
família, criavam-se todo o tipo de altares onde Nossa Senhora iria
permanecer uma semana, e que altares maravilhosos que se faziam!
Paredes inteiras da sala principal de cada casa eram cobertas de seda
azul e tule branco, e Nossa Senhora era entronizada com todas as
honras em altares fantásticos, que esgotavam toda a criatividade dos
moradores e encantavam a vizinhança! Apesar de ser uma atitude
totalmente católica, não era incomum as senhoras luteranas mandarem
flores do seu jardim para o altar do vizinho, ou mesmo de
comparecerem às cerimônias, que viravam quase acontecimentos
sociais.
Eu
era fascinada pelas procissões e pelos maravilhosos altares azuis e
brancos, pejados de velas acesas e flores (as flores, naquela época
de antes do surgimento das floriculturas, eram cultivadas por cada
dona-de-casa). O chato era, depois, ter que rezar o terço. Eu até
que gostava do terço quando era a Dona Nilda que o puxava, de uma
forma natural e sem afetação, mas havia dias em que quem o fazia
era o “seu” Moreira, um outro vizinho, que embarcava na recitação
do terço como se estivesse num palco, levando o dobro do tempo, o
que preocupava enormemente a nós, crianças, que queríamos que
aquilo acabasse logo para poder conversar. Eram bonitas as ladainhas,
e delas, eu gostava. A ladainha de Nossa Senhora me fazia viajar na
sua poesia e no seu encanto, e enquanto todo mundo ficava repetindo:
“Rogai por nós”, eu me amarrava, mesmo, era nos lindos títulos
de mãe de Deus: Rosa
Mística! Torre de marfim!
Eram
palavras que estavam fora do nosso vocabulário do dia-a-dia, e que
botavam a minha imaginação a funcionar pra valer.
Depois
da procissão, do terço, das ladainhas e dos cantos, era hora de
voltar para casa. Por toda aquela semana se ia rezar o terço naquela
casa; no sábado seguinte, tudo se repetia, e havia a ansiedade para
se conhecer o novo altar. Poderia ser um altar mais pobre, dessa vez,
mas estaria pejado das melhores flores da redondeza, e haveria as
velas da procissão noturna, e os cantos, e as expressões como “Rosa
Mística” para mexer com a minha cabeça. Eu era muito pequena para
saber das coisas, mas, com certeza, muitos namoros devem ter iniciado
nessas visitas de Nossa Senhora pela minha rua afora, muitas receitas
eram trocadas pelas donas-de-casa, muita gente que não se conhecia
acabava se conhecendo. Momento de integração de uma comunidade,
momento de magia para as crianças, um dia Nossa Senhora deixou de
fazer as visitas. E a magia das procissões com velas nas noites de
sábado se acabou.
Blumenau,
12 de maio de 1996.
*
Escritora de Blumenau/SC, historiadora e doutoranda em Geografia pela
UFPR, autora de vinte e seis livros (o 26º lançado em 5 de maio de
2016), entre os quais os romances “Verde Vale” (dez edições) e
“No tempo das tangerinas” (12 edições).
Entre os títulos tinha um que marcou minha infância: Arca da Aliança. Milena, minha mãe, devota de Nossa Senhora gostava de explicar os significados e os tantos nomes da Mãe de Jesus.
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