O
Tietê instrumento de penetração do Brasil sul ocidental
* Por
Alfredo d’Escragnolle Taunay
No
conjunto das vias de penetração do Brasil meridional ignoto e
selvagem, nenhuma tem tão longínqua significação quanto a que ao
Tietê o mais notável realce empresta. Está o nome do grande rio de
São Paulo indestrutivelmente ligado à história da construção
territorial do nosso enorme Ocidente. Muito mais antiga a navegação
frequente de suas águas do que a do São Francisco e do Amazonas.
Inçado de obstáculos, entrecortado pelas barreiras das itaipavas e
dos saltos, como que a Providência propositalmente lhe tornara
áspero e penoso o vencimento do dilatado curso para manter
exercitadas as qualidades de resistência e a capacidade de
sofrimento dos seus navegadores rudes. Nele não se nota a placidez
lacustre amazônica, permitindo a entrada e a livre marcha das
esquadrilhas e das esquadras, por milhares de quilômetros adentro do
Continente, nem os enormes trechos desimpedidos do São Francisco, do
Paraná, do Uruguai, nem ainda a navegabilidade do Itapicuru ou do
Parnaíba.
A
cada passo barram-no longas corredeiras, obstruem-no grandes saltos
intransponíveis às embarcações como os de Itu, Avanhandava e
Itapura. Assim, ao Sertão e aos mistérios do centro sul-americano —
defendeu o Tietê com toda a energia das águas a cada passo
escachoantes. Foi o adversário digno de ser vencido por aqueles que
o dominaram. Quando às suas maretas entregaram a sorte incerta as
primeiras e toscas esquadrilhas dos devassadores do Sertão? As que
lhe sulcaram as ondas e afrontaram as penedias? É o que ninguém
sabe e, provavelmente, jamais se saberá. Imemorialmente navegado
pelos índios do planalto, em demanda das terras do Paraguai,
desceram pelas águas do velho rio de Anhembi os exploradores das
primeiras décadas da descoberta e do povoamento do Campo de
Piratininga. E a contracorrente os espanhóis do Paraguai como
categoricamente afirmou o velho Rui Diaz de Guzmán em La
Argentina,
ao relatar que os castelhanos frequentemente chegavam ao Avanhandava,
fato que Azara recordou e Eduardo Prado denegou sem lhe caber contudo
plena razão. A exegese de Groussac em documentos castelhanos
quinhentistas é a tal propósito categórica. Documento oficial
cartográfico surge-nos o primeiro em 1628, quando o capitão-general
do Paraguai, D. Luís de Céspedes y Xeria, empreende a passagem do
porto que talvez seja o atual Porto Feliz, a Ciudad Real, sempre pelo
Tietê e o Paraná. Saindo de São Paulo, partiu em demanda a um
porto do grande caudal, onde a navegação começasse a ser mais
franca. Dezenove dias levou a descer o Tietê até a barra, no
Paraná.
E
em relatório a Filipe IV descreveu os perigos vencidos nas
corredeiras e o trabalho da varação dos canoões nos saltos do
Avanhandava e de Itapura assim como “la
abundancia de pescado, y la grandísima suma de caza de tigres,
leones (sic), y
muchísimas antas”.
Da jornada deixou uma “topografia”, como no tempo se chamava, uma
das maiores preciosidades, certamente, do Arquivo General de Índias,
em Sevilha. É talvez o mais antigo mapa de penetração do Brasil,
até agora divulgado, e tem inestimável valor evocativo.
Com
grande júbilo o destacamos e divulgamos e nele se estampa o primeiro
documento iconográfico da vila de São Paulo do Campo de
Piratininga, o tosco desenho que retrata a sede de sua
municipalidade, de sua Câmera como se dizia no tempo e como ainda
dizem os que refletem as vozes ancestrais. Por ele se vê que os
nomes de vários dos maiores rios do sistema paraniano eram os mesmos
naquela época longínqua.
Pelas
águas do Tietê cada vez mais frequentes desceram as bandeiras
cativadoras de índios e prospectoras de ouro. Provavelmente por elas
também navegaram os nossos primeiros devassadores da selva
mato-grossense e escaladores dos Andes, os sertanistas, outros
obscuros “cujas ações heroicas a lima do tempo consumiu”, na
frase do velho cronista que lhes celebrou os feitos. Avoluma-se o
movimento para o Oeste misterioso com o decorrer dos anos
seiscentistas. Pelo Tietê descem os últimos grandes acossadores de
índios e destruidores de reduções jesuítas.
E
é por ele que corre às terras do Sul mato-grossense o grande
sorocabano Pascoal Moreira Cabral Leme, mais tarde descobridor do
Cuiabá e apossador definitivo, para a coroa lusitana, da imensa
região central lindeira dos castelhanos do Peru. Escoam-se os
últimos anos da centúria seiscentista e encerra-se, para os
paulistas, a era da caça ao índio, o período cruel dos
devassadores. Reboa, de repente, estrepitoso grito de descoberta: as
duas sílabas de palavra que é dos maiores desencadeadores dos
sentimentos humanos: Ouro! Ouro! Revela-se o primeiro Eldorado
brasileiro, o dos Cataguases, depois território das Minas Gerais do
Ouro de São Paulo. Fazem-se mineradores os grandes descedores de
índios e o âmago do Brasil é atingido pelas bandeiras, na ânsia
do metal. Acodem os ultramarinos aos milhares, para compartilhar das
descobertas dos paulistas. Dá-se o primeiro grande e fatal embate da
corrente nacionalista com a prepotência dos reinóis. Em massa
abandonam os filhos de São Paulo as terras das minas de sua
Capitania aos contrários, apoiados na parcialidade dos compatriotas,
detentores da autoridade. É imensa, porém, a terra do Brasil e os
paulistas, acostumados a fazer mais do que promete a força humana,
hão de descobrir novos Eldorados.
Surge
em 1719 a notícia do encontro do segundo deles, por Pascoal Moreira
Cabral e seus companheiros ilustres. As novas da “fertilidade”
das minas do Cuiabá alucinam as populações. Terra do ouro onde tão
vil é o metal que os descobridores, a passarinhar, atiram com os
grãos amarelos, para poupar chumbo! As notícias aos mais calmos
estarrecem... Dá-se colossal rush pelas
águas do Rio das Entradas e Pedro Taques conta-nos as misérias
indescritíveis de muitas destas esquadrilhas, organizadas às
pressas e a esmo, para vencer o deserto aspérrimo, nelas embarcando
indivíduos de todas as categorias: aventureiros e burgueses
afortunados e colocados, civis, militares, eclesiásticos.
As
febres, a fome, os naufrágios, os índios exterminam expedições
inteiras. Não tardam, porém, providências régias para a
organização das novas terras doadas à monarquia lusitana, pelo
bandeirantismo. Pelos rios vai Rodrigo César de Meneses, a Cuiabá,
instituir os primórdios daquilo que, em 1748, servirá ao
estabelecimento da nova capitania mato-grossense.
Base
de todo este novo surto de exploração constituiu-se o remansoso
local da penedia onde, segundo os índios, vinham as araras amolar os
férreos e aduncos bicos, essa Araraitaguaba, de tão prestigiosa
rememoração em nossos fastos.
Núcleo
de bandeirantes, de sertanistas, já em 1728 cria-se freguesia.
Enceta-se então a era das monções regulares. Continuam, Tietê
abaixo, as navegações instigadas pela fama das “grandezas do
Cuiabá”. A todos alvorota a chegada do primeiro ouro, os quintos
reais avidamente cobiçados pelo rei pródigo e brevemente
Fidelíssimo.
Nada
faz diminuir o afluxo dos imigrantes! Nem as mais sinistras notícias
do extermínio de expedições inteiras pelos terríveis canoeiros e
cavaleiros, paiaguás e guaicurus. Nem o anúncio das pestes, das
carneiradas, e das temerosas fomes do Cuiabá, onde, desvairados pela
ânsia do ouro, nenhum mineiro planta, e onde, mais uma vez, se
realiza o que a mitologia grega de simbolismo sempre poderoso,
concretiza na imagem de Midas, morrendo de inanição à margem do
Pactolo.
Continua
o afluir de gente e este povoamento de Mato Grosso é, talvez, a mais
evidente demonstração da energia do aventureirismo paulista. Que
distância imensa a vencer! E que viagem temerosa esta de
Araraitaguaba às margens do Coxipó!
No
entanto, aos espanhóis do Paraguai, que lhes custava atingir aquelas
paragens, se nada mais tinham do que subir uma série de correntes
plácidas sem um único acidente que lhes interrompesse a viagem,
como com tanta propriedade recorda Southey? Não é bem assim! Havia
os paiaguás e os guaicurus; isto bastou para lhes vedar o acesso do
Alto Paraguai.
Caem
em declínio as minas de Cuiabá e escasseiam as monções, mas nem
por isto deixa a navegação do Tietê de existir, pois jamais
recuaram as quinas, chantadas pelos paulistas, às margens do
Paraguai e do Guaporé. E legitimadas graças à ciência e à
argúcia do seu patrício, o filho de Santos, a quem imortalizou o
Tratado das Cortes.
(História
geral das bandeiras paulistas,
Tomo II)
*
Engenheiro
militar, professor, político, historiador, romancista, teatrólogo,
biógrafo e
etnólogo, membro
da Academia Brasileira de Letras.
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