Ariano
Suassuna, erudito e popular
* Por
Urariano Mota
Há três anos, em um 24 de
julho, assim falavam as notícias:
“O velório de Ariano
Suassuna, realizado no Palácio do Campo das Princesas, no Centro do
Recife, foi encerrado na tarde desta quinta-feira (24). Iniciado
na noite anterior, ele ficou aberto durante toda a madrugada e
recebeu grande número de parentes, amigos e fãs do escritor.
Em
cima do caixão, foram colocadas bandeiras do Sport, da
Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), do estado de Pernambuco
e do Brasil. O enterro está previsto para acontecer no Cemitério
Morada da Paz, em Paulista, Grande Recife, por volta das 16h”.
Mas as notícias nada falavam
do clima real, do povo real, no enterro de Ariano Suassuna. Eu estava
na fila, do lado de fora do Palácio do Governo, à espera da ordem
para que todos pudessem entrar em ordem até o caixão. Mas a fila
não se movia. Nela, apenas se ouviam murmúrios de um povo que se
conformou à fila de inúteis esperas, sob o sol ou sob a chuva como
um destino. Na longa conformação as pessoas se lamentavam:
“disseram que depois da missa a gente podia entrar. Mas já faz
mais de hora que a missa acabou”. Eu olhava meu relógio, que
parecia também ganhar a imobilidade da fila: 30 minutos, quarenta
minutos... Juro que eu temia ouvir a qualquer momento um grito de lá
da frente:
- O ingresso acabou!
E na minha frustração, me vi
de volta para casa entre impotentes protestos, em voz baixa e
educadas: “não deixaram o povo entrar”. Então eu fui até a
frente da fila, me aproximei da grade de ferro que nos separava até
do pátio da grande casa, e perguntei ao funcionário muito
importante, pois metido ele estava num terno que é a farda dos
áulicos.
- Por que demoram tanto a
permitir a entrada?
Ele, como toda autoridade que
se preza, pois os áulicos também se tornam autoridades por efeito
de imantação e imitação, ele, o Superior, não me viu nem ouviu.
Então eu ergui uma pouco a voz, até porque o de cima, por estar
muito longe de mim, podia não ter me ouvido:
- Eu perguntei ao senhor por
que o povo não pode entrar.
O grande desceu os olhos sobre
mim, não tanto pela altura distinta, mas pela diagonal com que
evitou o meu rosto e foi até o meu peito. Respondeu:
- Agora, só entra a família.
Mas para desgraça da
discriminação, ou para sua melhor prova, eis que se dirige ao
obstáculo em forma de gente a então presidenta da Academia
Pernambucana de Letras, escritora Fátima Quintas. Quase sem
palavras, o emocionado funcionário lhe deu entrada. Mas não o fez
por mal, considero agora. Pelos traços diáfanos do rosto pálido e
modos gentis, só podia mesmo ser parenta de um ilustre. Engoli, com
o intimo entrando em revolta. “Vá lá, foi uma exceção aberta
para o cargo de presidenta da academia. Não podemos ser sectários”,
me falo, com esforçada dialética. Mas ato contínuo, veio o mais
grave. Eis que se apresenta uma senhora quase tão pálida quanto a
anterior, mas com voz de mando e conhecedora do ambiente do palácio.
Era Margarida Cantarelli, pessoa da confiança de Marco Maciel, e que
no ano seguinte seria também presidenta da Academia Pernambucana de
Letras. Que profecia do impedidor. Então este aqui, um jamais
imortal, perguntou ao oficial general da proibição:
- Por que essa senhora entrou?
E o portão abusado:
- É família.
Eu lhe respondi:
- É não, senhor. Essa é
Margarida Cantarelli, nada tem a ver com a família do Ariano.
O comandante de ar-terra-e-mar
sorriu da minha ignorância. Agora percebo a extensão do seu ar de
mofa. O seu risinho certamente queria dizer:
- Então você não sabe que
quem manda é Pernambuco é família? Mandou, é parente. Foi
parente, manda, não vê?.
Mas eu, crente de viver em uma
república democrática, me enchi de indignação cívica. E falei
para o marechal, pensando estar fortalecido pela massa excluída à
minha volta:
- É um absurdo que no enterro
de Ariano Suassuna o povo não possa entrar.
Ao que recebi o convite em
fórmula corruptora:
-O senhor quer entrar? Entre!
E eu, amigos, falei num
repente de cordel que nem mesmo imaginara:
- Não falo por mim. Eu não
quero privilégio.
As pessoas concordavam, e o
murmúrio foi crescendo. Então o comandante-da vedação recebeu a
ajuda do seu chefe de um piso mais alto. Apareceu outro funcionário
de terno e lhe falou:
- Já pode entrar. Libere.
Entramos. Mas lá dentro,
houve outra decepção, porque se levantou mais um impedimento.
Nós não podíamos nos aproximar do corpo de Ariano Suassuna. Quero
dizer, vê-lo de perto, tocar-lhe as flores, observar a curta
distância a sua face de artista do povo. Havia um retângulo
de corda a nos separar dos restos mortais do escritor. No
espaço mais íntimo, vizinho ao corpo, se mostrava a família e quem
mais fosse família em Pernambuco. Eram, para usar a imagem preferida
do escritor, os dois Brasis. O oficial e o real. O oficial,
resguardado, em sua nobreza e classe ao lado do caixão. O real
estávamos em fila, a rodar, a circular, como numa fila de Tântalo.
Queríamos estar juntos, mas nos afastávamos. Então embriagado de
espírito democrático chamei a administradora daquela divisão, uma
jovem uniformizada:
- Você não pode levantar
esta corda?
- Não. Ali somente pode estar
a família.
- Só a família? –
respondi, olhando os grandes vultos da sociedade recifense
- E os amigos da família.
- Mas no enterro de Miguel
Arraes não foi assim. Todo o mundo pôde chegar perto.
Ao meu lado, o cantor Santana
do forró balançava o queixo em aprovação. Mas para evitar um
pequeno escândalo em frente ao caixão, a jovem voltou com a lógica
implacável dos servidores:
- Com Arraes, foi a família
também que deixou. .
Mais tarde, soube que Germana
Suassuna, neta do escritor, não aceitou aquela odiosa divisão.
Emocionada, falou em discurso no cemitério: :
- Dentro da corda, está o
Brasil oficial. Mas meu avô gostava mesmo era do Brasil real, que
está fora da corda..
Ela viu bem, estava certa.
Então é para Ariano Suassuna, o escritor amante do Brasil real, que
continuo estas linhas.
As intervenções, falas,
entrevistas, aulas magistrais de Ariano Suassuna, eram e continuam a
ser até hoje impagáveis na memória. Nele, se subverteu aquele
princípio que rezava: os escritores são melhores quando lidos. Não.
A sua fala, com expressiva eloquência e graça, rivalizava com a
escrita. Não sei, não conheço outro caso de escritor, em todo o
mundo, que chegasse perto de Ariano Suassuna quando falava em
entrevistas ou nas suas imperdíveis aulas-espetáculo. Entendam, por
favor, o que desejo expressar sem qualquer ufanismo. Não é que ele
fosse o mais espirituoso da história ao falar. Ou possuísse os
repentes geniais de Nelson Rodrigues, o teatrólogo que disputou com
ele o prêmio de autor de obras-primas do teatro brasileiro. Em
Nelson, o humor era outro, uma visceral corrosão cujo poder vinha do
inesperado em palavras. Nem era tampouco que a ironia nele estivesse
ao nível de Bernard Shaw e Mark Twain. Nesses, o embate mordaz era
contra a desorganização social do moderno capitalismo.
Quando escrevo que não há
outro escritor que se ponha na altura de Ariano Suassuna quando
falava, quero dizer: esse paraibano do Recife era um ator de gênio
ao enunciar o próprio pensamento. Mas isso é universal, poderiam
dizer: Mark Twain, Nelson Rodrigues, Shaw e outros faziam gênero de
personagem em suas palestras. Acontece que com o nosso escritor havia
o palhaço – Ariano era um autêntico palhaço sem pintar visível
a cara. Ele fazia mesmo palhaçadas de matar de rir, pelos tiques
nervosos e recriações dos tipos humanos que conhecera na juventude
e infância. Olhem, por exemplo aqui, na sua entrevista a Jô
Soares, ao relembrar Benedito Mucica
Mas nessa comédia viva há
uma reflexão moral, já observamos. À sua maneira de palhaço, ele
expressava atos de gente de cara e dente, ou seja, cumpria uma função
do artista. Era do ofício. Em lugar de uma dissertação, uma ação.
Em lugar de uma discussão filosófica, um movimento de gente. Gente
com ideias, com conceitos, ainda que analfabeta, pasmem os equívocos.
E mostrar gente sem instrução formal, expressando à sua maneira
ideias civilizadas, vinha a ser escolha de só fio. Na fala de Ariano
Suassuna havia a contradição do complexo, o pensamento mais
elaborado, e da formulação desse complexo em língua que se ouvia
na cozinha da nossa casa.
Dai que muitos o confundiam
com o exterior de inculto do sertão nordestino. Risível engano. O
quanto estamos acostumados com a pose, em prejuízo do que os olhos
não veem. Eu confirmei a história que divulgo agora, vivida pelo
poeta José Carlos Targino.
Na aula de Estética, do curso
de Letras da UFPE, quando Ariano Suassuna falava sobre o Dom Quixote,
o poeta recifense que os amigos conhecem por Targino interrompeu o
mestre. Com base na confiança que Ariano lhe concedia e a quem
imitava a fala, na ausência de Ariano, Targino falou:
- Ariano, até hoje eu não
levei adiante a leitura do Dom Quixote.
E Ariano:
- Por quê, Targino?
- É muito volumoso,
professor, toma muito tempo....
E Ariano Suassuna:
- Targino, pelo amor de Deus,
não faça uma desgraça dessas. Eu mesmo já li o Dom Quixote mais
de 3 vezes.
“Então eu acabei lendo essa
maravilha que é o romance do Cervantes”, me escreveu, por email, o
poeta José Carlos Targino ainda ontem E acrescentou na sua
mensagem:
“Quando eu também disse a
ele que não havia lido o monumental romance de Tolstoi, ele observou
que havia lido onze vezes o Guerra e Paz!”
Eu próprio testemunhei a sua
cultura, quando assisti a uma palestra em que ele mostrava os
antecedentes literários do Dom Quixote a partir do livro Lazarillo
de Tormes. E com uma graça que era inimiga do pedantismo. Nele, não
havia a exibição de lombada, como algumas vezes se vê em Jorge
Luis Borges. É que Ariano aprendera por ofício e natureza a arte de
citar sem a citação entre aspas. Isso significa: a citação que
era critação, porque leitura e vivência recriadas no próprio ser,
que terminavam por fazer um novo autor. É ilustrativo disso o que
lhe ocorreu depois do sucesso do Auto da Compadecida.
Contam que um crítico de
teatro lhe perguntou certa vez de onde Ariano Suassuna havia tirado,
para o Auto da Compadecida, as histórias do gato que descomia
dinheiro, a história do testamento deixado pelo cachorro do padeiro
e a da gaita que ressuscitava defunto. Ariano respondeu que
tudo ali havia sido retirado dos folhetos de cordel. Ao que
perguntou o jornalista, à beira da indignação:
- Mas o que o senhor escreveu
então?
Resposta do autor:
- Eu escrevi foi a peça.
Só a peça, que era tudo, e o
crítico míope não sabia. Na formação cultural do escritor muito
ele devia ao ambiente do tempo de ouro da cultura e política no
Recife. Ele teve a sorte, única, de ser amigo de João Cabral de
Melo Neto, Paulo Freire e Capiba. Mas acima de tudo, de modo mais
central, do escritor, teatrólogo, jornalista e agitador cultural
Hermilo Borba Filho. Do seu encontro com Hermilo, ele falou uma vez:
“Encontramo-nos, pela
primeira vez, quando entramos ambos para a Faculdade de Direito, no
ano de 1946. Ali teria início, sob a liderança dele, o importante
movimento do Teatro do Estudante de Pernambuco. Nós íamos para a
faculdade pela manhã, mas a universidade onde realmente se fazia a
nossa verdadeira formação era a casa de Hermilo, na Rua do Capim,
casa onde, à noite, nos reuníamos até altas horas, conversando,
concordando e discordando, brigando e ensinando. Hermilo, que
acreditava demais em mim, metia-me na mão, quase à força, os
livros que achava que ajudariam na minha caminhada. Foi ele quem
praticamente me intimou a escrever a primeira peça de teatro”
A maioria das pessoas não
sabe, mas na peça que lhe trouxe a consagração universal, ele não
devia só à leitura dos folhetos de cordel e o ao natural talento.
Sobre isso, o ator Carlos Reis, que interpretou Jesus Cristo na
Paixão de Cristo de Nova Jerusalém, de 1969 a 1977, me prestou esta
preciosa informação:
“O cenário da abertura da
peça como um picadeiro de circo, assim como o palhaço que anuncia o
espetáculo por vir, foram sugestões de Clênio Wanderley, o diretor
que estreou o Auto da Compadecida em 11 de setembro de 1956, no
Teatro de Santa Isabel. As ideias sugeridas por Clênio Wanderley
foram incorporadas por Ariano Suassuna no texto da peça. Houve
ainda outras ideias de Clênio acatadas por Ariano, como se mostram
na primeira edição em livro do Auto da Compadecida, e que foram
informadas pelo próprio Ariano Suassuna no texto”.
Prova de grandeza o
agradecimento público do autor. Mas o fato é que a peça terminou
por ser, de certa maneira, a vitória de um trabalho coletivo, guiado
e composto pela obra de Ariano Suassuna. Ele “só” fez escrever a
peça. Os elementos estavam diluídos na atmosfera, até que o seu
gênio os organizasse em um corpo dramático.
Penso, por fim, que as
intervenções de Ariano Sussuna como escritor educador, nas
entrevistas e aulas-espetáculo, de um ponto de vista político eram
um Shaw e Twain contidos, nos limites da convivência dos governantes
da província. Daí que o poder político retira dele até hoje uma
parte do todo, sintetizando-o no quadro de um “defensor da causa
nordestina”. E por “causa nordestina” muitas vezes querem
dizer: a raiz, o autêntico homem do sertão, em caminho até o
primitivo original, quase como um adão de tempos medievais. O que o
próprio Ariano Suassuna aqui e ali fazia bandeira. É claro que é
um equívoco, para dizer o mínimo. Cultura de raiz é sempre cultura
de misturada, de outras terras, fora da raiz primeira. É como se
Ariano Suassuna se tornasse o ideólogo da vaquejada. Mas o seu
alcance é outro e mais longínquo: ele era um artista, um cultor da
estética teórica e prática, um homem que falava para o mundo a
partir da sua aldeia. E ganhou o prêmio de ser visto como um homem
de todas as aldeias. O nosso universal popular. Um nacionalista que
gozava com a cara da burguesia cuja maior cultura era ter conhecido
Disney World. Ou como declarou uma vez e para sempre:
“Quem um dia ler o Auto
da Compadecida,
vai saber que eu estou do lado de João Grilo e de Chicó, os dois
personagens que representam o povo do Brasil Real”.
Este é, enfim, o Ariano
Suassuna que guardamos.
*Publicado,
originalmente, no Vermelho
*
Escritor,
jornalista, colaborador do Observatório da Imprensa, membro da
redação de La Insignia, na Espanha. Publicou o romance “Os
Corações Futuristas”, cuja paisagem é a ditadura Médici,
“Soledad no Recife”, “O filho renegado de Deus”, “Dicionário
amoroso de Recife” e “A mais longa juventude”. Tem inédito “O
Caso Dom Vital”, uma sátira ao ensino em colégios brasileiros
Precisamos nos conhecer mais. Nós, esses desconhecidos.
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