Exu
baixou na UERJ
* Por
José Ribamar Bessa Freire
“A
ciência precisa de uma dose de anarquismo teórico, porque regras
excessivamente rígidas impedem seu desenvolvimento”. (Paul
Feyerabend – “Contra o Método” – UNESP, 2011)
Meus
camaradinhas, ninguém me contou. Eu vi. Nesta quinta-feira (01) à
tarde, Exu baixou na Uerj. Eu estava lá e ouvi o som dos tambores e
o arfar do sopro dos encantados. Vi o senhor dos caminhos chutar o
pau da barraca, escoltado por mandingueiros, macumbeiros, jongueiros,
capoeiras, poetas feiticeiros e rezadeiras, com a benção de todos
os orixás. Se não ignorasse a universidade, a mídia teria enviado
repórteres, locutores de rádio, câmeras e tv para cobrir fato tão
relevante não só para os iniciados no baticundum, mas para toda a
sociedade brasileira. Se não o fez, faço-o eu, dando notícia aqui
neste Diário
do Amazonas.
O
que é que Exu foi fazer na Uerj, cujos professores e funcionários
estão com os salários atrasados? (Gargalha). Sua presença se deu
na oferenda de um ebó epistemológico em forma de tese – “Exu
e a pedagogia das encruzilhadas”
– defendida por Luiz Rufino Rodrigues Jr. diante de um auditório
lotado com gente sentada no chão, sob o olhar amoroso do seu Luiz e
da dona Maria. Um senhor acontecimento.
Fiquei
tão encantado com a leitura das quase 300 páginas, que sai,
eufórico, nas últimas semanas, anunciando a boa nova para os mais
de 200 alunos das seis disciplinas que estou dando nesse semestre na
Uerj e na Unirio. A empolgação foi tal que não me contive e –
juro – falei da tese com deus e o mundo e até com o porteiro do
meu edifício, que me olhou como se eu fosse um profeta. Podem
perguntar dele.
O
encanto da tese
O
que me encantou foi a originalidade. O autor fez o que faz um bom
pesquisador: dialogou com os phds – os phodões nacionais e
estrangeiros que teorizaram sobre o tema e estudaram a questão. Para
não arrombar portas já abertas, passou pente fino em todos eles e
os submeteu ao crivo da crítica. Mas foi muito além. Cruzou a
produção acadêmica com narrativas míticas (itãs), louvações
(orikis), pontos cantados, rezas, máximas filosóficas, versos,
saberes transmitidos por tambores nos terreiros de candomblé,
umbanda, macumba, jongo, rodas de capoeira, esquinas, ruas, feiras,
mercados, bares e “no bate-perna e emenda-conversa com sujeitos
comuns”.
Uma
vez que a ciência sempre teve um tanto de macumba e que a macumba
vem carregada de saberes, Rufino percebeu a presença dessas forças
exusíacas no pensamento dos autores que leu. É dessa forma que Exu
baixa em Fanon e faz de Bakhtin seu cavalo de santo, sem o qual o
filósofo russo jamais pensaria a cultura popular na Idade Média
(Gargalha). Walter Benjamin “pega um santo”, ou melhor, “abholen
heiliger”? (gargalha de novo). As palavras feiticeiras, a ginga de
jogador e o conhecimento do riscado desses teóricos permitem que
Rufino construa sua rede conceitual, forjando uma tese em
encruzilhadas.
Mas
a originalidade não reside apenas nos procedimentos metodológicos
que conferem rigor à abordagem do autor. Ele inova também na forma
revolucionária de expor, com um texto refinado, de qualidade
literária, cuja leitura nos faz perder o fôlego. Um dos pontos
altos da tese é a linguagem, que traduz a cosmologia dos terreiros
para a escrita e faz isso com muita força, rompendo com o
academicismo por vezes enfadonho (gargalha). A tese, cujos capítulos
estão divididos em cinco esquinas e na saideira, é realmente um
ebó, com estrutura tecida nos rituais dos terreiros.
Mas
afinal o que vem a ser essa pedagogia das encruzilhadas, que vai dar
o que falar? Exu já foi estudado por várias disciplinas -
antropologia, história, psicologia, estudos culturais - mas não tem
sido abordado sistematicamente no campo da educação. O que Exu tem
a ver com a educação? Saberemos melhor se os cursos de pedagogia
introduzirem no seus currículos a disciplina Pedagogia da
Encruzilhada.
Exu,
o pedagogo
Rufino
parte do fato que o colonialismo destroçou os corpos de negros e
índios, nos desmantelando enquanto seres, submetidos a uma política
de subordinação, encarceramento e morte. Com sua pedagogia racista,
impôs o conhecimento ocidental - que é particular - como se
fosse universal, legitimado por “uma ciência que se reivindica
como única e come na mesma cumbuca que o colonialismo”.
Discriminou assim todo e qualquer outro saber, satanizando os rituais
e as formas em que eles circulavam com o objetivo expresso de
apagá-los. Cometeu, dessa forma, um epistemicídio e um glotocídio,
detonando línguas e saberes que nelas circulavam.
Os
países da América deixaram de ser colônias no séc. XIX, mas o
colonialismo nos legou a herança da colonialidade, que é mais
profunda e duradoura, atravessa as repúblicas, suas legislações e
suas políticas educativas, persistindo até os dias atuais com a
manutenção de desigualdades e injustiças. A colonialidade se
apodera de nossos corações e mentes e - nos diz Rufino – emerge
como o carrego colonial que nos espreita, ofusca e desencanta.
Uma
das consequências de olhar Exu como capiroto é a blindagem
cognitiva que nos aterroriza desde a infância, nos cega e nos impede
de acessar os saberes ancestrais capazes de melhorar nossa qualidade
de vida, o que é um enorme “desperdício de experiências”.
Aconteceu também com os índios, que tiveram satanizados suas
divindades, seus heróis civilizadores, como Jurupari e Anhanga,
cujos saberes foram decepados e jogados na lata do lixo pelo
fundamentalismo do colonizador.
Mas
se a colonialidade persiste nas bancadas evangélica e ruralista do
parlamento e na “escola sem partido”, a resistência a ela também
continua, firme e forte, em todas as frentes de luta, forjando nossa
capacidade de resiliência e transgressão, na guerrilha
epistemológica contra o racismo e contra a injustiça cognitiva.
Esse combate abre a esperança de recuperarmos os diferentes saberes,
subterrâneos e clandestinos, convivendo com suas lógicas diversas,
como um compromisso em defesa da vida em sua integralidade. É nesse
processo denominado de decolonialidade que entra Exu, aquele que é a
potência que destrói para construir.
Transgressão
abençoada
‘A
pedagogia da encruzilhada – nos anuncia Rufino com ousadia - se
sustenta justamente na figura de Exu, o transgressor, que com suas
estripulias e traquinagens, chuta o pau da barraca da colonialidade
no combate ao racismo e ao epistemicídio. Ele é a energia que dá
suporte à transgressão, questiona os limites da racionalidade
moderna e reconhece os saberes ancestrais discriminados.
Exu,
meus camaradinhas, não mira a superação de nada, mas sim a
esculhambação, como ato de resistência e de transgressão.
Presente nas práticas culturais afro-brasileiras, Exu é a
decolonialidade, a potência decolonial em estado bruto. Ele sacaneia
a lógica do colonialismo e sua pretensão universalista, bagunça o
monologismo e o unilinguismo, engole tudo de um jeito para
regurgitar de outro, reinventa e ressignifica, produzindo um saber
que não tem qualquer pretensão de revelar a verdade única, mas
aposta sobretudo na diversidade, na convivência, na tolerância.
A
encruzilhada, que constitui um campo de possibilidades e de incursão
para todas as formas de conhecimento, é uma operação de
transgressão dos parâmetros da colonialidade, o lugar onde se
destroem as certezas, o espaço das frestas e das brechas, nos diz
Luiz Rufino. E como Exú está presente em todos os atos da vida
natural e social, a sua epistemologia é complexa e a sua pedagogia
também o é. Ele não é dono de uma verdade, porque assim seria o
colapso de um sistema pautado por narrativas que guardam versões. O
que ele nos oferece é a noção de alternativas.
Essa
é a pedagogia da encruzilhada fundamentada no rolê epistemológico,
no ebó epistêmico, no cruzo, no jogo de corpo, na ginga, no drible
e na negaça, noções empregadas por Rufino a partir das leituras
que fez de livros e dos saberes adquiridos nos terreiros.
Na
minha arguição na banca, citei artigo de Marilena Chauí que
critica tanto o professor autoritário - o dono do saber, como o
populista – que faz demagogia barata em sala de aula. Para
ela, o ideal de professor é aquele capaz de morrer, como o grão de
trigo, para que o aluno deixe de ser aluno e possa, enfim, germinar.
O ebó em forma de tese do Rufino, que foi meu aluno na
graduação e, agora, me ensina o que eu não sabia, me deu a
sensação de que morri, junto com todos os membros da banca, de quem
ele foi aluno e que contribuíram muito mais do que eu para sua
formação. Três dias depois ressuscito com esta resenha.
P.S.
- A saideira vai em forma de cinco notinhas:
1
– Luiz Rufino Rodrigues Junior: “Exu e a pedagogia das
encruzilhadas”. (01/06). Tese para obter título de doutor no
Programa de Pós-Graduação em Educação (PROPED) da UERJ. Banca:
Mailsa Passos (bendita orientadora), Luiz Antônio Simas (UFRJ),
Júlio César Tavares (UFF), Adriana Facina (UFRJ), Stella Guedes
Caputo (Uerj) e José R. Bessa (Uerj-Unirio).
2
- Agradeço às duas macumbeiras do Laboratório de Oralidade do
PPGMS da Unirio, Mãe Wal e Ana da Neuza, pela leitura compartilhada
da tese.
3
– Jurupari ensaiou uma visita à Uerj no dia anterior (31/05), com
o exame de qualificação do doutorando Ênio Oliveira, que prepara
tese no Programa de Pós-Graduação em História sobre os índios
Puri do vale do Paraíba. Da banca presidida pelo orientador Marco
Morel, fizeram parte Vânia Moreira (UFRRJ) e este locutor que vos
fala.
4
– Suspeito que os professores indígenas, que em muitas de suas
escolas já estão usando a pedagogia das encruzilhadas, vão gostar
das duas teses. O reitor da Uerj, Ruy Garcia Marques e a vice-reitora
Maria Georgina Muniz deviam receber Exu e Jurupari em seu gabinete
para assinarem convênio de intercâmbio com essas entidades.
5
– No dia em que Exu baixou na UERJ, o Programa de Estudos e
Pesquisas das Religiões (PROEPER) organizou um ato em defesa da
Uerj, no hall dos elevadores, coordenado por Emilio Galland Mira y
Lopez, ao qual já não tive pernas para comparecer.
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