terça-feira, 1 de novembro de 2016

Um homem imprescindível



Há uma declaração célebre do dramaturgo e poeta alemão Bertholt Brecht que não me canso de citar, sempre que surge algum pretexto para tal em que ela seja pertinente. Citei-a dezenas de vezes, e citarei quantas forem oportunas e cabíveis, posto que com variações aqui e ali (dependendo da tradução que me estiver à mão), embora todas as versões conservem, obviamente, o conteúdo, que é o que importa. Brecht observou, com absoluta pertinência (não me recordo se em alguma de suas tantas peças ou em outro contexto): “Há aqueles que lutam um dia; e por isso são bons; há aqueles que lutam muitos dias; e por isso são muito bons; há aqueles que lutam anos; e são melhores ainda; porém há aqueles que lutam toda a vida; esses são os imprescindíveis”.

Essa citação cabe como uma luva a uma figura maiúscula da minha cidade de adoção, a um campineiro ilustre que deveria ser citado sempre como exemplo de solidariedade e de amor ao próximo, mas que pouca gente por aqui (e fora daqui) conhece, por ser raríssimamente mencionado. Refiro-me ao professor e jornalista Norberto de Souza Pinto, que deixou sua marca indelével nas duas atividades principais a que se dedicou: o magistério e o jornalismo. Seu nome veio à baila em uma crônica que meu confrade da Academia Campinense de Letras, Rubem Costa, publicou, se não me engano em 2009, no Correio Popular de Campinas, intitulada “Mestre Norberto”, que por feliz acaso me caiu nas mãos nesta data.

Destaco que há um milhão de coisas positivas que eu poderia citar do autor deste memorável texto, o que pretendo fazer oportunamente, com mais vagar. Entre outras tantas coisas a dizer dele, enfatizo que esta exemplar figura, que tenho a honra e o privilégio de poder chamar de “companheiro” (mas ele é muito mais do que isso) de Academia Campinense de Letras, esbanja talento, lucidez e entusiasmo aos (se não me engano) 98 anos de idade. Tanto que, no final de 2013, lançou mais um de seus excelentes livros, “Bicentenário de Campinas – A saga que a cidade amou”. Mas não é propriamente de Rubem Costa que vou tratar hoje, nestas breves considerações. É de quem foi seu companheiro de jornada e mentor, Norberto de Souza Pinto.

Esse mestre lendário, esse campineiro exemplar nascido em junho de 1895 fundou, em 1917, quando a Europa vivia uma das mais sangrentas e perversas guerras de todos os tempos, a primeira escola para crianças portadoras de deficiência mental do Brasil. E, o que é mais notável, fê-lo por iniciativa própria e com recursos exclusivamente pessoais, ele que lutava com dificuldades financeiras até para se manter. Fez isso no mesmo ano em que se formou professor normalista, aos 23 anos de idade, tendo seus estudos custeados pelo bispo Dom Nery e pelo médico Thomaz Alves. Pouca gente, então, entendeu o significado e o alcance da sua atitude. Afinal, eram todas crianças segregadas e vistas como incapacitadas pela sociedade, pela escola e pelas famílias. Norberto não somente lhes proporcionou ensino adequado, como dedicou toda sua vida à recuperação delas. Só isso já lhe valeria um Prêmio Nobel da Paz, caso houvesse justiça na atribuição dessa honraria.

Ao contrário de tantas e tantas instituições beneficentes, que têm vida curta, dada a indiferença da sociedade, o Instituto de Pedagogia Terapêutica Norberto de Souza Pinto sobreviveu ao tempo e ao pouco caso dos vários governos, em suas diversas instâncias e também ao seu criador, que morreu em 22 de dezembro de 1968. A escola está viva, vivíssima, prestando um trabalho inestimável a gerações e gerações de crianças com deficiência intelectual. Sou testemunha. Ela está perto de mim, no bairro em que resido, o Jardim Chapadão. A instituição, que no ano que vem vai comemorar seu centenário, é comandada, hoje, pela neta do educador, a socióloga Joselene de Souza Pinto. Mas o Instituto não é o único legado (embora no meu entender seja o maior) desse homem que, recorrendo á conceituação de Brecht, foi “imprescindível”. Norberto foi o fundador, na década de 30 do século passado, da Associação Campineira de Imprensa.

Ao longo de 40 anos, manteve sua coluna no Correio Popular, além de colaborar com jornais de várias cidades do interior paulista, como Ribeirão Preto, Araras, Jundiaí e vai por aí afora. Onde Norberto encontrava tempo para tanta coisa? Sabe-se lá! O fato é que encontrava! E não só para isso, mas para escrever e publicar diversos livros, tanto sobre ensino a crianças com deficiência intelectual, quanto sobre jornalismo e literatura. Como não admirar e não citar sempre e sempre e sempre como exemplo uma pessoa assim?! E pensar que há tantos “ídolos com pés de barro” glorificados pela mídia, que não se dá o trabalho de divulgar a obra e as idéias desse “gigante da espécie”.

Faço minhas as palavras de Rubem Costa que, no final de sua crônica, exalta as realizações desse educador e jornalista. Sobretudo, quando afirma que a criação do seu instituto é “uma obra feita de amor que traduz em ação o mais desprendido dos anseios humanos — dar de si antes de pensar em si. De Norberto de Souza Pinto, como marca de sua crença ao longo de uma grande vida, só se pode falar com as palavras de Ruy definindo a fé: — um oceano que continua a ser oceano enquanto as ondas perpetuamente correm sobre as ondas”. Ou como Brecht certamente o caracterizaria: “um homem imprescindível”.

Boa leitura!

O Editor.

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Um comentário:

  1. Uma vida prática e emocionante. Quanta sorte você teve, Pedro, de encontrar essa fonte de amor para dela nos falar.

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