As mordidas da infância
* Por
Mara Narciso
Quando a primavera
chega, junto com ela reaparecem os gostos das frutas do cerrado, este
semidesaparecido desde a infância. Por mais que os carvoeiros levados pela
urgência e acossados pela exploração de gente de todas as laias arrancaram tudo
pela raiz, ainda sobraram uns poucos arbustos tortuosos, com seus caules de
cascas grossas, sobre terrenos áridos e encascalhados, nascidos ninguém sabe
como, nem por quê. Por insistência e resistência inexplicáveis, algumas frutas
ainda acontecem. As sementes do cerrado têm a chamada dormência. Quando
plantadas, quase não nascem, tornando difícil o reflorestamento com espécies
originais. Criam-se técnicas para fazer romper o broto, porque na natureza, em
sua maioria a semente apodrece. Essa característica torna ainda mais grave a
situação das árvores do cerrado. Terra infértil e desmatamento monstruoso nos
deixaram a erosão e o deserto. Culpados e inocentes, mas nem tanto, não
reclamem: sem árvore, sem água!
Ainda assim, na feira,
desde outubro se vê pitomba, panã, coquinho azedo, jabuticaba, mangaba, araçá,
goiaba, cagaita e manga curraleira nativa, sendo a espada, rosa e ubá as mais
frequentes, e cada qual com seu perfume. A lista vai se ampliando à medida que
o verão se aproxima, quando então chega o valioso pequi, que sofreu os mesmos
desvarios da ganância geral. Cada fruta tem seu aroma marcado e marcante, que
nos leva para outro tempo e lugar, pois o cheiro, nossa memória mais ancestral
nos remete a um passado ainda mais profundo do que o gosto. Ambos os sentidos
se misturam, pois são próximos e se complementam.
Adoro manga e, como
alardeio o fato, ganho muitas, mas meu alimento predileto é o murici, que de
raro virou raríssimo, feito diamante. Arrancaram com trator quase todos os pés
de murici, para fazer ferro guza. Quando se encontra um arremedo da fruta, é
congelado ainda verde em pacotes, e ao ser descongelado está imprestável. Tão
espetacular é seu sabor forte, envolto em odor inebriante, que é preciso
comê-lo de joelhos. Não, não se morde um murici, pois é mínimo, pouco maior que
uma pérola, mas se mordisca a fruta inteira dentro da boca, para sorver-lhe a
carne escassa, e ter um prazer que as palavras não encontram. Porque murici é
para sempre, ainda que os pés de murici sejam para nunca mais. Sim, há 40 anos
procuro uma muda de murici para plantar em meu jardim, mas por ser
irrealizável, ganhei do meu primo Cláudio uma muda de araçá, que plantei e
estou cuidando como a um bichinho. O araçá é uma espécie de goiabinha amarela,
de pouco aroma e muito sabor, nem doce nem azedo.
As frutas do cerrado
são assim mesmo, deliciosas. Colher no pé uma manga ubá, vê-la próxima, pequena,
amarela, às vezes com algumas pintinhas pretas, tenra, cheirosa como uma flor,
faz encher a boca d’água ao se preparar para degustá-la. E então, romper-lhe a
carne, numa dentada macia, molhada, saborosa, para devorá-la passo a passo, num
ritual que os apreciadores fazem do jeito antigo. Morder uma manga faz barulho,
o caldo escorre, e para não perdê-lo, chupa-se esse néctar, ao mesmo tempo em
que se suja a cara. Todo o processo é um deleite como poucos, até mesmo encher
os dentes com fiapos, e ver a bela infância retornar. E se continua a
consumação do pecado, abatendo-se com ganância toda a circunferência da fruta,
agora quase nua. Vai-se arrancando a casca com pequenas dentadas, mergulhando
os dentes na carne dela, saboreando essa delícia de prazer fugaz. E tendo
outra, mais uma, e tantas, que tempo de manga faz engordar e ficar amarelo.
Tão rico e agora tão
pobre, assim está o nosso cerrado, hoje, cheio de vazios, um quase nada, apenas
um gosto na memória.
*Médica endocrinologista, jornalista
profissional, membro da Academia Feminina de Letras e do Instituto Histórico e
Geográfico, ambos de Montes Claros e autora do livro “Segurando a
Hiperatividade”
Que crônica maravilhosa, Mara!!! Muitas das frutas que você citou estão entre as minhas prediletas. Pena que os homens, na sua extrema burrice, estão acabando com o que deveria ser preservado com extremo zelo. O que fazer? Sua crônica traz-me doces recordações, sobretudo da infância. Onde estão nossos leitores que não se manifestam? Será que só as picuinhas da política (que, a meu ver, não devem ser sequer levadas em consideração) lhes interessam? Mais uma vez, Mara, meus entusiásticos PARABÉNS!!!
ResponderExcluirObrigada, Pedro.
ResponderExcluirEssa sua crônica me lembrou um gosto da infância que nunca mais resgatei, deliciosamente inesquecível: abiu. Acho que é esta a grafia. Algo do outro mundo.
ResponderExcluir