terça-feira, 8 de setembro de 2015

Vozes do deserto


* Por Eduardo Oliveira Freire 


“Os contos das Mil e uma Noites povoaram a imaginação de sem-número de leitores que, pendentes dos narradores, ansiavam para saber o que riria acontecer com Simbad e Zonaide e, com o mesmo fôlego curto, temiam pela sorte de Scherezade entregue ao capricho do mais cruel dos ouvintes”. (Escritor Alfredo Bosi)

Antes de falar sobre o romance que acabei de ler, contarei brevemente uma lenda oriental, UMA FÁBULA SOBRE A FÁBULA.

Quando Deus criou a mulher, inventou a fantasia. Um dia, a Verdade visitou um grande palácio, onde morava um sultão. Vestida com um véu transparente, bateu na porta do palácio para falar com o sultão. “Sou a Verdade! Quero falar ao vosso amo e senhor”. O chefe dos guardas foi ao grão-vizir, disse que uma mulher quase nua queria falar com sultão. O grão-vizir não quis conversar com a Verdade: “A Verdade quer penetrar nesse palácio! Não! Nunca! Que seria de mim, que seria de todos nós, se a Verdade aqui entrasse? A perdição, a desgraça nossa! Dize-lhe que uma mulher nua, despudorada, não entra aqui!...”. O chefe dos guardas disse para a Verdade que ela não podia entrar no palácio “A sua nudez iria ofender o califa”.

Quando Deus criou a mulher, criou também a Obstinação. E a Verdade persistiu na visita ao palácio. Cobriu as peregrinais formas de um couro grosseiro, como os que usam os pastores, e foi novamente bater à porta do suntuoso palácio, em que vivia o glorioso senhor das terras muçulmanas. Bateu novamente na porta. O chefe dos guardas perguntou quem era. Sou a Acusação. Ele foi ao grão-vizir. “Senhor, uma mulher desconhecida, com corpo envolto em grosseiras peles, deseja falar ao nosso soberano. Chama-se Acusação”. O grão-vizir: “A Acusação! Que seria de mim, que seria de todos nós, se a Acusação aqui entrasse?! A perdição, a desgraça nossa! Dize-lhe que não, não pode entrar! Dize-lhe que uma mulher, sob vestes grosseiras de um zagal, não pode falar ao nosso amo e senhor!”. Depois, o chefe dos guardas disse para a Acusação que ela não podia entrar.

Quando Deus criou a mulher, criou o Capricho. E a Verdade encheu-se do vivo desejo de visitar o grande palácio do sultão. Vestiu-se de riquíssimos trajes, cobriu-se com jóias e adornos, envolveu o rosto em um manto diáfano de seda e foi bater outra vez à porta do palácio. “Sou a Fábula”. O chefe dos guardas falou com grão-vizir. “Uma linda e encantadora mulher, vestida como uma princesa, solicita audiência de nosso amo e senhor. Chama-se Fábula!”. O grão-vizir: “A Fábula quer entrar neste palácio! Alá seja louvado! Que entre! Bendita seja a encantadora Fábula e que ela tenha, neste palácio, o acolhimento digno de uma verdadeira rainha!”. E, abertas de par em par as portas do grande palácio de Bagdá, a formosa peregrina entrou. Foi assim, sob o aspecto de Fábula, que a verdade conseguiu aparecer ao poderoso califa de Bagdá, o sultão.

Nélida Piñon, em “Vozes do Deserto” (RECORD, 2005) mostra os bastidores dos contos das Mil e uma Noites, que são histórias fantásticas, inventadas e preservadas na tradição oral. Revela a mulher que está por de trás da visão mítica da famosa contadora de história da literatura oriental, Scherezade. Ela se comunica com o Califa com a sua habilidade de contar histórias. Almeja envolvê-lo numa teia de sensualidade, através das palavras, para que não mate mais as suas esposas e nem ela mesma. A narrativa está na terceira pessoa. É como se o narrador estivesse a contar oralmente as aventuras da protagonista.

Scherezade tem, como aliadas, a irmã Dinazerde e a escrava Jasmine. Elas a ajudam no cotidiano do palácio e na elaboração das histórias. A personagem principal sempre se lembra da Fátima, uma antiga empregada que cuidava dela quando era pequena e que a ensinou a arte de fabular. De um lado, está a força viril do Califa, e o seu ódio por todas as mulheres, devido a esposa Sultana, que o traiu com um outro homem, no outro está Scherezade, com o dom da palavra. Ela faz o Califa se emocionar e se identificar com os personagens marginais, pobres, e com as vozes dos povos nômades, que vivem no deserto. “Scherezade aprende a sobreviver. As regras da vida não estão escritas. Cabe-lhe inventá-las a cada aurora”. No decorrer da narrativa, a intimidade e as angústias da contadora de histórias, de sua irmã Dinazerde e da escrava Jasmine são expostas. Amor, respeito e inveja se misturas nas três personagens.

Scherezade quer ser livre como os personagens, os quais inventa. Não quer ser aprisionada. Como a Verdade da fábula, possui a fantasia, a obstinação e o capricho. Aliás, como o povo de Bagdá e os nômades do deserto, que apesar das adversidades e capricho dos poderosos, continuam a fabular e a sonhar. Usam A PALAVRA para semear, por gerações futuras, seus mitos, lendas e costumes.

* Eduardo Oliveira Freire é formado em Ciências Sociais pela Universidade Federal Fluminense, está cursando pós-graduação em Jornalismo Cultural na Estácio de Sá e é aspirante a escritor

Um comentário:

  1. A sua imaginação e criatividade, Eduardo, são semelhantes a algumas características de Scherezade.

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