Sujeito Zero (9)
* Por Sergio Vilas Boas
Alma já havia
percorrido
quase uma centena de milhas, praticamente metade do caminho, quando os pneus do
Hyundai Accent da Hertz patinaram. A Interstate-95 estava entupida de neve, as
pás dos caminhões não conseguiam desbloquear extensões consideráveis. Toneladas
de sal grosso não surtem efeito imediato.
Avistou viaturas com alertas
azuis-vermelhos ligados. Naquele ponto, o tráfego fluía no ritmo de soldados em
marcha. Centenas de veículos compunham uma fila tripla do tamanho do mundo.
Alma desacelerou até parar no acostamento, porque era absolutamente necessário.
Um policial a pé informava com um
megafone que além do acúmulo de neve houve acidente grave 12 quilômetros à
frente, e que as três pistas da Interstate estarão bloqueadas “por tempo
indeterminado” sentido sul. Rádios, tevês e sites foram imperativos: estacionar
em local seguro e aguardar.
Tudo o que não queria ouvir uma pessoa
energética ao natural e desesperada por força maior. O que de fato a movia?
- É a pior do século? (Pergunta um
locutor bem aquecido em seu estúdio.)
O locutor aproveita a oportunidade para
destilar estatísticas, como se a natureza, não o ser humano, estivesse ávida
para quebrar seus próprios recordes de tempos em tempos. Havia outro fato, este
interpretativo: era a maior nevasca dos últimos dez anos.
- Deus! (Grita Alma, esmurrando o
volante, o vidro aberto.) Meu pai está morto! Eu preciso sair daqui! (E chora.)
Sair daqui. (Chora copiosamente.) Preciso sair...
Ela odeia demonstrar fraqueza e, no
entanto, estava em vias de mostrá-la. O policial ouve, lamenta e deseja-lhe boa
sorte via megafone. Pede que os motoristas atendam às orientações nos painéis
luminosos instalados no acostamento.
Pobre diabo, aquele tira. Devia estar
lá no sacrifício. Ventos de 70 quilômetros por hora cortando-lhe o rosto; a
friagem queimando-lhe os olhos. Deus o livre.
Alma levantou o vidro do Hyundai. Ela
nunca enfrentou uma nevasca, muito menos à noite, e nesse aperto de estar aérea
sobre solo desconhecido, asfalto escorregadio, coração aos trancos. A todo
momento lembrava-se de seus calmantes. Apanhou um. Engoliu-o com a ajuda das
últimas gotas de suco Tropicana.
Aos prantos e solavancos, e
contrariada, teve de seguir as orientações do guarda. Não podia ficar parada
ali, queimando combustível, destruindo a camada de ozônio, para se manter
aquecida e estática como um rochedo. Devia tomar a rota 27, que intercepta a
saída 90 da Interstate e conduz a uma pequena vila colonial portuária às
margens do rio Mystic, pouco antes do encontro deste com o mar.
Percorreu cegamente uns três
quilômetros. As referências espaciais desapareceram sob quase 50 centímetros de
polvilho branco lançados pela tempestade em curso há cinco horas num crescendo.
Quando entrou no que parecia ser a vila chamada Mystic, suas pernas depiladas
no dia anterior tremiam. Os pés calçados com botas recheadas de várias camadas
de meias de lã pareciam sobrenaturais, não se controlavam. O batom borrara.
Alma está acostumada a acelerar a
história, a pensar o presente nos termos do futuro, às vezes esquecendo-se dos
minutos, dias, semanas, décadas passadas. Mas é desorganizada e ansiosa. Não
sabe ainda que não se vencem obstáculos apenas com autêntica vontade.
A presente sensação de perda total, de
querer voltar ao seu espaço, sua raiz, expressava um desejo de renascer, não de
jogar o carro contra a escuridão; de reconstituir, não de vencer a nevasca o
quanto antes. Estava enredada, tendo que se deixar ir pela primeira vez.
O mais rígido de todos os fatos
mencionados é que estava aparentemente sozinha em território estrangeiro. Os
laptops, por mais amigáveis, estão se lixando para os ataques de pânico de seus
usuários. Mesmo que perguntem “como vai, Alma?” quando plugados à tomada, não
estão dizendo coisa com coisa, não produzem sentido ou conforto. Isto é fatal
para uma mulher, mesmo sendo uma mulher diferente, mesmo sendo ela Alma.
Ela se impregnou da corrida, tornou-se
máquina de enfrentar opositores, indústria de protestos, difusora de idéias
antineoliberais. Sua capacidade de radicalizar contraria a tônica de sua geração.
Mas continua contraditória como o pai. A solidão inevitável das viagens a
exaspera, estar só consigo a tensiona. Eis o limite de arriscar o próprio
destino em um louco atentado terrorista e ainda por cima ter de suportar o
silêncio ulterior.
Seu Edmundo nunca lhe foi um suporte, e
sim uma variável constante. Representava sem ocupar. A expressão fraca dele a
desmobilizava em segundos. Pois naquela noite ela teve exatamente de lidar com
isto: o silêncio gelado (totalitário); o medo; a tela do laptop; a presença do
pai ausente e a dúvida entre fugir ou se entregar.
Ela avistou um néon - Whaler’s Inn - e
procura a entrada rodeando-o. É um conjunto de residências de marinheiros do
século XIX transformado em pousada. Edificações em tardio estilo georgiano
(referência aos George I, II e III, que se sucederam na Inglaterra entre 1714 e
1820): impecável senso de simetria a serviço da finalidade de abrigar; escalas
perfeitamente quadradas.
O elegante recepcionista vestido de
terno e gravata é um índio que percebe a tensão de Alma.
- Não, senhora. Não alugamos quartos
por hora.
- Acha que é possível eu chegar em
Newark antes das 23h?
O índio da tribo Mashantucket Pequot
olha o relógio: 20h. Juntas, as companhias que operam em Newark já haviam
cancelado mais de quinhentos vôos previstos para aquela noite, entre domésticos
e internacionais, por causa da nevasca. Ou seja, Alma não embarcaria mesmo se
pudesse estar no check-in às 22h, conforme lhe aconselharam.
- Newark, Nova Jersey, a senhora quer
dizer?
Alma lê no peito do índio o nome
Quanaduck (meu anjo da guarda) gravado no crachá metálico. Ela assoa o nariz,
esfrega delicados lenços de papel perfumados ao redor dos olhos.
- A senhora está bem?
- Estou.
- Tem certeza?
- Já disse que sim, ora. E então, dá
pra chegar?
- Receio que não. O trabalho das pás
mal começou. A nevasca cobriu um raio enorme. Com otimismo, vejamos: (O
cinqüentão Quanaduck ficou pensativo.) talvez a senhora possa voltar para a
Interstate após a meia-noite. Claro, se a tempestade cessar.
Decorre uma pausa constrangedora.
- O estado lá fora é de emergência.
Melhor esperar ao menos a luz do dia, senhora.
- Um quarto, então. (Ela se rende.) Com
linha pra internet.
Alma se sente como em um filme de
ficção científica, naquele ponto da trama em que a coerência interna se rompe.
- Tomou a decisão certa.
Ela e Quanaduck sobem as escadas. Ele
carrega as malas, gentilmente, mesmo contra a vontade dela.
- Um absurdo. (Diz Quanaduck usando um
cartão magnético para abrir a fechadura do quarto; ele se refere ao cassino.)
Depois de séculos de obscuridade, os
Pequots ficaram conhecidos nos anos oitenta por tirar vantagem de uma
legislação que eximia as reservas indígenas das leis locais contra o jogo. Os
Pequot então permitiram que se encravasse a oeste de Mystic um dos maiores
cassinos do mundo.
- Chama-se Foxwoods. A senhora conhece?
Quanaduck abre a porta; um cheiro de
sachê curtido exala.
- Não. (Diz Alma, entediada.)
- Monumental. E ridículo. (Quanaduck
aguarda algum comentário de Alma; não vem.) Um absurdo. Toda a minha família
foi contra aquele cassino e pagamos caro por isso.
O quarto que Quanaduck oferece não é
dos melhores, mas o que havia. Nem comparação com o do Tremont.
- Não temos cozinha nem serviço de
quarto hoje, senhora. E as... Bem, as vending machines estão fora de serviço.
Sinto muito.
Um bando de famintos havia passado pelo
Whaler’s também fugindo da tempestade e, prisioneiros da nevasca, creditaram às
máquinas de junk food suas esperanças de enganar o estômago.
- Há um restaurante chinês aqui em
Mystic reputado por fazer entregas 365 dias por ano sob qualquer condição
atmosférica. (Quanaduck já suspeita que está sendo inconveniente.)
Não se encontra comida vegetariana em
calamidades. Mas se a fome apertar, há o telefone 1-800 impresso no folder-menu
do chinês. Por isso Alma guarda-o no bolso do overcoat.
Quanaduck cancela a palestra sobre a
operação dos instrumentos eletrônicos do quarto. Entrega o cartão magnético.
- O cartão. (Os dois dizem em uníssono;
ele rindo, ela séria e decepcionada; o cartão prova a circunstância:
impotência.)
Quanaduck bate a porta ao sair. Um
silêncio imemorial invade o quarto. Alma terá de enfrentar primeiro aquele
outro inimigo, que não tem voz ativa, não toma decisões, jamais se apressa,
aceita o limbo de seu oceano de dúvidas e assume-se como objeto obscuro; terá
de perdurar o passado digitando, processando, salvando informações nos discos
rígidos de sua máquina portátil ao longo da noite. Temporariamente, sua memória
cerebral talvez fique ainda mais confusa e sobrecarregada. Imprescindível um
retentor auxiliar. Meio mundo cabe em 1 megabite.
Alma
acredita num futuro melhor, mas pensa poder viver sem vestígios, como se
pertencesse a uma sociedade muito, muito antiga, dos tempos em que não se
conhecia a escrita. O que é tempo real, afinal de contas? Por acaso é a
condensação no presente de múltiplas operações em andamento?
Pode-se apagar a memória, a
singularidade dos lugares, os traumas indizíveis, a crença no dinheiro como
falta de crença, etc. Todos esses argumentos que Alma costuma usar, às vezes
vociferante, para lamentar o declínio, a corrupção, a barbárie tecnocientífica,
a desimportância da consciência, o congelamento in vitro das essências, podem
não passar de escudo.
Vejam-se os idosos, Alma. Um velho não
aguarda passivamente as lembranças lhe acudirem. Eles procuram-nas,
escarafuncham armários carcomidos, perguntam outros velhos até encontrar o que
não foi fixado pela escrita: a cor predominante do xadrez da toalha de mesa da
Cantina di Grazzia no dia da festa de aniversário de um ano do primeiro neto,
por exemplo. Os velhos se interessam pelo passado mais do que os jovens.
Mas não há sobrevivência sem memória.
Se aplicassem um forte golpe na cabeça de Alma e as áreas que presidem sua
memória fossem danificadas, ela perderia a identidade. Por isso, não temam: a
memória humana deve ser respeitada mesmo quando cruel ou mutável. A do
computador, não. É uma memória pueril.
A vida de Alma foi muito diferente da
de seus companheiros de militância. Ela não estudou em escolas particulares, ao
contrário, testemunhou os estertores do ensino público fundamental; não foi
aluna de professores importantes e
ninguém jamais recomendou-lhe a leitura de algum clássico da literatura
universal; ela sempre teve de se virar sozinha.
Talvez por isso fique tão irada quando
ouve que sua geração cultua a imagem e a auto-imagem e que é mestre em
esquecer. Só os rótulos a incomodam mais que isto. Já tacharam-na de xiita,
talibã, hippie tardia, freak, para mencionar apenas alguns; freqüentemente
criticam também suas formas de protesto: “métodos de trinta anos atrás!”.
Sua tarefa nesta noite gelada é imensa:
reconstruir o sujeito que a encantava e intrigava ao mesmo tempo, o homem cujas
mãos férteis amigavam as plantas. Uma rebelde estabanada e de má pontaria como
Alma tinha de gostar das habilidades divinas do pai. Podemos descobrir muitas
coisas nele, Sr. Ghostwriter.
* Jornalista,
escritor e professor. Editor do portal TextoVivo Narrativas da Vida Real (www.textovivo.com.br); vice-presidente
da Academia Brasileira de Jornalismo Literário (ABJL). Autor de “Os
Estrangeiros do Trem N” (1997), “Biografias & Biógrafos” (2002) e “Perfis”
(2003), entre outros. E-mail: svilasboas@textovivo.com.br.
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