Quando o poeta traveste-se de profeta
O poeta é capaz de prever o futuro? Objetivamente, não! Não
só ele, como ninguém tem essa capacidade de ver com antecedência o que não
aconteceu e sequer pode vir a acontecer. Essa, pelo menos, é a lógica nua e
crua. Podem ser feitas extrapolações, com base no presente, e até com razoável
margem de acerto. Muitas vezes a intuição, misteriosamente, “antecipa”
acontecimentos. Não se trata, todavia, de nenhuma certeza, que isso funcione.
Não, pelo menos, sempre. Pelo contrário. Victor Hugo tem uma citação célebre a
respeito, embora se trate só de “possibilidade”, às vezes remota e outras nem
tanto. Escreveu, em certa ocasião: “Não há nada como o sonho para criar o
futuro. Utopia hoje, carne e osso amanhã”. E sonhar, convenhamos, no sentido de
desejar ardentemente alguma coisa de difícil obtenção, o poeta sabe fazer como
poucos.
Às vezes, observe-se, o sonho tende a ser pesadelo. Ou seja,
em alguns casos intuímos que possa ocorrer não o que desejamos, mas o que não
queremos e nem sabemos como evitar. Mário Quintana observou, certa ocasião, em
uma de suas crônicas: “O que me impressiona, à vista de um macaco, não é que
ele tenha sido nosso passado: é este pressentimento de que ele venha a ser
nosso futuro”. Ninguém, óbvio, em sã consciência, deseja que isso ocorra. Mas...
vá se saber até onde pode chegar a estupidez humana!! Será que tem limites?
Temo que não.
Este preâmbulo, talvez mais extenso do que deveria (e
aparentemente pessimista) vem a propósito da quinta (e última) vertente
temática do livro “IbirAMARres e outros poemas”, (Editora Nova Letra) do poeta
catarinense Harry Wiese, intitulada “Profecias”. Diferente das outras quatro,
esta seção consiste de uma única composição, que tem, exatamente, esse título. Ao
leitor desavisado, essas pseudo-previsões podem, até, soar pessimistas.
Depende, contudo, de como cada um “sente” o poema. Sim, porque poesia, reafirmo
pela enésima vez, não é para ser racionalizada, mas sentida. E cada qual a
sente conforme sua interpretação e, principalmente, sua personalidade. E ao
sabor das circunstâncias afetivas no momento da leitura.
Harry Wiese conclui, com esse poema, de forma brilhante –
diria grandiosa, com um marcante “grand finale” – seu livro, que recomendo, sem
pestanejar, ao leitor de bom gosto, como você. Como quem não quer nada, o poeta
produziu uma obra-prima de sensibilidade, inteligência e criatividade, digna de
figurar nas mais seletas bibliotecas. “Profecias” é extenso demais para ser
reproduzido na íntegra. É um poema com 21 estrofes, recheadas de criativas e
sonoras metáforas.
Para não deixá-lo na mão, reproduzo alguns trechos dessa
insólita composição. Como este:
“Vejo flores silvestres
Que ninguém sabe o nome,
Na relvada costa agreste-celeste.
Vejo homens outrora comportados
Engolir sonhos fabricados
Na sua capengueira missão de capengar.
Vejo o céu abrir-se azul
Tão longe,
Para mostrar que o infinito
Não termina no além-eterno-absoluto
Por onde nossos pensamentos não podem
chegar (...)”.
Ou como este:
“( ...) Vejo democratas analfabetos
camuflados
Em camaleões em tempo de carnaval
Pregando a paz duradoura eterna
E tanto pregam a paz que a paz que
pregam
Torna-se conceito de paz.
Vejo, apesar de tudo, botões de rosa,
No coração dos jardins,
Para não trair
A tradição de não trair sonhos reais.
Vejo ameaças cor-de-sangue
Alastrando-se tumultuadas
Entre meu povo (...)”
Ou como este outro:
“(...) Vejo crateras profundas
Nos rostos dos homens
E nos seios das mulheres,
Seios tão desmitificados em decorrência
Do sofrimento
contínuo-natural-determinista.
Ah como vejo longe!
Nem os canalhas do palácio conseguem se
esconder.
E paparicam,
E transportam,
E delatam,
E ferem,
E ameaçam,
E matam,
Tudo em nome da Lei (...)
E reproduzo, sobretudo, este clímax, este ápice, este grand
finale, não somente do poema ou da vertente temática, mas desta obra-prima, que
é “IbirAMARes”:
“(...) Vejo a mim mesmo,
Amante de palavras que provocam emoções
no coração amante,
Da amada amante
Cansada de tanto amar,
E amo,
Vejo que amo.
Vejo o amor e o meu povo,
Eu vejo tudo, meu Deus!
Eu vejo.
Eis aqui a ordem de quem vê:
Não interfiram na Sinfonia do Amor,
Nem usem instrumentos de ódio,
pois morrerão imediatamente
ao ouvirem o solo fantástico do meu
violino (...)”
É beleza pura, como se vê. É a situação típica em que o
poeta se traveste de profeta, mesmo que torcendo para sua “profecia” jamais se
concretizar.
Boa leitura.
O Editor.
Acompanhe o Editor pelo twitter: @bondaczuk
Muitas mãos cheias de poesia.
ResponderExcluirDestaco: "Vejo homens outrora comportados
Engolir sonhos fabricados".
Beleza de versos. Não sei o que fiz dos meus sonhos, mas não os engoli. Acabei ficando sem nada para sonhar.