Conversas ruins, quase impossíveis
* Por
Mara Narciso
O título afugenta um
possível leitor. Mas é preciso correr riscos, porque é urgente falar de
sensibilidade e amor. Zeca Baleiro chora quando vê um beijo de novela. Você se
emociona com o quê? Cães morando sobre túmulos dos donos, ou, um deles dentro
de um túnel que perfurou para ficar mais perto do seu melhor amigo arrancam
emoções fortes. O despertar de sentimentos contundentes vem da internet quando
viralizam cenas e opiniões, criando imagens icônicas em poucos dias.
Quem está vivo viu
Alyan Kurdi, a criança síria afogada numa praia da Turquia. Morreu junto com a
mãe, o irmão e mais nove pessoas. Eram refugiados de guerra que pretendiam
atingir a Grécia. Não é simpático tentar minimizar tal tragédia. Senti forte
comoção. Não sou boazinha e nem politicamente correta cem por cento do tempo,
mas, deixemos a hipocrisia de lado para admitir que a criança branca afogada
choca mais do que as centenas de negros, inclusive crianças, mortos afogados e
vistos em cenas semelhantes.
A criança síria, de
pele clara, com o rosto dentro da água, chocou mais por ela lembrar
fisionomicamente e estar vestida como nossas crianças, me disse um amigo. Ver a
imagem dá um baque. Mas, caso fosse uma criança vestida no estilo muçulmano não
incomodaria tanto? E se fosse um indiano ou um africano? Talvez não. É que, a
todo instante nos deparamos com imagens de crianças africanas famintas,
esqueléticas, comendo fezes de camelo, bebendo águas pútridas, outras
torturadas e trucidadas.
A imigração para a
Europa é, neste instante, em massa, a beira de instalar-se um novo holocausto.
Aconteceu o envenenamento e morte por gases e congelamento de 71 sírios num
caminhão baú, numa estrada da Áustria. Todos os refugiados precisam de
compaixão, apoio e acolhimento. Seríamos nós capazes de ofertar as ações
humanitárias de que necessitam?
Pois acontecem agora
no mundo muitas diásporas, palavra inicialmente referente ao povo judeu, que se
espalhou pelos continentes, e hoje, o termo pode ser aplicado a qualquer povo,
uma fração dos mais de sete bilhões e cento e sessenta e cinco milhões de
humanos, que migra açoitada por catástrofes naturais, guerras, epidemias,
conflitos religiosos ou étnicos. Temendo pela ameaça concreta, é preciso sumir
para não morrer. Mas está morrendo pelo caminho marítimo.
Os humanos não param
de se mudar. Sem entrar nos méritos científicos, e falando de forma simplista,
vejo preocupada a volta dos colombianos expulsos pela Venezuela, mexicanos
impedidos de entrar nos Estados Unidos, haitianos hostilizados nas cidades
brasileiras. Sírios e africanos estão invadindo a Europa e sendo rejeitados por
alguns países, ainda que outros governos façam uma operação de guerra para
recebê-los.
Quando os europeus
chegaram ao Brasil, escorraçados pelas guerras e incentivados pelo governo para
branquear a população e assumir a cultura de café, trouxeram a fome e os
farrapos, e tiveram a oportunidade de se colocar na zona rural ou urbana, ainda
que existisse xenofobia. Alguns eram artesãos, sapateiros ou alfaiates, mas a
maioria não tinha qualquer qualificação, estando em situação deplorável. Hoje,
seus descendentes estufam o peito para glorificá-los, ostentando sobrenomes
difíceis de pronunciar. É apenas orgulho diante das batalhas vencidas. E têm
razão de agirem assim. Eles venceram. Agora, africanos famintos e desesperados,
vistos, não como refugiados e sim como imigrantes ilegais, tentam chegar à
Europa, e não são recebidos.
O continente africano
é pobre não por ser naturalmente pobre. O povo africano foi espoliado durante centenas
de anos pelo continente europeu, e agora, parte dele se nega a acolher seus
refugiados. Assunto doloroso, cuja visão dada pelo noticiário me chega assim:
muito negativa, mesmo com ressalvas.
Crianças africanas
mortas não incomodam tanto quanto uma criança branca afogada pela insânia
humana. Caso tenha coragem, peça ao Google para lhe mostrar imagens de crianças
africanas torturadas, amputadas, ou tendo o clitóris recortado com gilete, a
frio, ou sendo comidas vivas por cachorro. Deveria causar engulhos ver as
atrocidades praticadas neste instante contra elas, contra muitas crianças,
contra nossas crianças. Somos uma humanidade cruel, monstros omissos,
acostumados com monstruosidades. Deveríamos nos mirar nos cães que amam e
morrem por seus donos, e não seres asquerosos, que escolhem o que ver e o que
sentir.
*Médica endocrinologista, jornalista
profissional, membro da Academia Feminina de Letras e do Instituto Histórico e
Geográfico, ambos de Montes Claros e autora do livro “Segurando a
Hiperatividade”
Seu texto é um soco no estômago é uma cutucada na velha ferida que nunca fecha, pois é onde mora a consciência. Te confesso uma certa tristeza, decepção, engulho... e torço fervorosamente para que eu não seja apenas um arremedo de gente. Parabéns Mara!!! Abraços!
ResponderExcluirEu preciso melhorar muito, Núbia, pois, ainda que me sinta comovida, não aceitaria refugiados na minha casa. Agradeço pela sua manifestação de emoção em relação ao meu singelo texto, ainda que saiba que é preciso coragem para expor esse tipo de opinião. Muito obrigada!
ExcluirRealmente, seu texto é um libelo, Mara. E gosto do recado final, onde você fala em nos mirarmos nos cães. Eles sabem tudo. Eles deveriam ser nossos donos! Um abraço.
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