sábado, 5 de setembro de 2015

A teoria de Ihering


* Por Pedro Lessa


Na teoria de Ihering não há lugar para um direito ideal. O direito positivo nasce da luta dos interesses. Entre direito e verdade nada há de comum. O que determina a promulgação de uma nova regra de direito é o aparecimento de um novo e momentâneo interesse. Ainda neste ponto o ensinamento de Ihering não se conforma com os fatos. Constantemente vemos condenada pela opinião dos competentes uma instituição, ou preconizada a necessidade de promulgar normas jurídicas sobre uma série de atos que escapam à sanção do direito.

Nada mais comum do que julgar uma sociedade que certas leis precisam ser reformadas. Qual o critério que nos guia ao formarmos esses conceitos? É a observação dos resultados colhidos da aplicação de um dado instituto jurídico que nos revela que o legislador, ao promulgar a lei, não apreendeu uma necessidade social: ou a dedução de uma verdade científica do domínio da antropologia, ou das ciências sociais particulares, que mostra que uma condição de vida e desenvolvimento social deve ser assegurada pela coação social. Também a sociedade se modifica. Como organismo, ou ser vivo, que é, passa por uma constante evolução, e a cada período de seu desenvolvimento se liga uma série de necessidades peculiares.

Assim, ao lado das necessidades comuns a todos os organismos sociais, constantes, permanentes, há outras próprias de cada fase social, o que faz que ao lado dos princípios e das normas jurídicas universais e imutáveis haja instituições variáveis. Nem se diga haver contradição entre esta verdade e o conceito de que o direito é um conjunto de leis científicas, que servem de base à formulação das normas jurídicas.

O homem fisiologicamente está sujeito a leis imutáveis, e a leis peculiares a cada idade. A alimentação da infância não é a da juventude. A higiene da maturidade não é a da decrepitude. As verdades que aqui ficam expostas são a cada momento implicitamente reconhecidas pelos adeptos de todas as escolas. O sectário da escola teológica, quando coerente, ortodoxo, arquiteta todo o edifício do direito sobre os alicerces fornecidos de uma lei destinada a assegurar uma das condições primordiais da existência social, ou a promulgação de uma norma jurídica que atenta contra essas condições, exclama: onde irá parar a sociedade, se as coisas continuam assim?!

O racionalista harmônico entende que todo o direito não passa de um desenvolvimento, ou antes aplicação, do princípio do justo, dado pela razão como faculdade intuitiva; mas, quando se lhe depara uma dessas inversões da ordem social, que põem em perigo a vida coletiva, por sua vez apela para o instinto de conservação individual e social, como o mais poderoso argumento contra o abuso perpetrado. No âmago de todas as doutrinas filosófico-jurídicas está o reconhecimento implícito de que o direito nada mais faz do que formular normas de conduta cujo conteúdo é, ou deve ser, uma verdade científica, o conhecimento de uma condição de vida ou de desenvolvimento da sociedade.

Se na realidade a missão do direito consiste em, verificada uma condição de vida e desenvolvimento da sociedade, dar-lhe a forma de norma de conduta e assegurar-lhe a realização pela coação do Estado, e se o processo de que dispomos para conhecer as condições de vida e desenvolvimento da sociedade se reduz ao método positivo, à indução e à dedução, porque não havemos de aceitar a doutrina que sistematiza as verdades implicitamente reconhecidas por todas as outras escolas? Quer-se saber qual a idade em que a norma jurídica deve permitir o casamento. A resposta de todas as demais escolas não tem a coerência e a precisão da que nos oferece a teoria científica do direito, a qual nos manda consultar a fisiologia, parte da antropologia que estuda os fenômenos da vida e as funções dos órgãos. Tem o legislador de fixar a substância de que se deve fazer a moeda. Cumpre-lhe indagar o que ensina a respeito a economia política. É mister promulgar uma constituição para um povo. Antes de fazê-lo, incumbe ao legislador constituinte examinar a história política dos povos, e apurar qual a organização do poder público que mais eficazmente tem garantido a liberdade, a ordem e o progresso. E assim por diante.

A formulação das normas jurídicas não é uma tarefa do empirismo, mas um trabalho científico. Não basta pesquisar isoladamente, e no momento de formular cada norma, ou de criar cada instituição jurídica, as verdades particulares que devem servir de molde à regra de direito. Importa elevar-se aos princípios, às verdades gerais fundamentais, espiritualizar a ciência pela filosofia.

(Estudos de filosofia do Direito, 1912).


* Jurista, magistrado, político, professor e escritor, membro da Academia Brasileira de Letras.

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