Contra o mugido das vacas
* Por
José Ribamar Bessa Freire
No momento em que a
Constituição Federal comemora 25 anos de existência, se ouve o mugido das
vacas, o relincho dos cavalos e o trote das mulas que invadem o plenário do
Congresso Nacional e se misturam ao zumbido estridente da moto serra. É
possível sentir o bufo agressivo que sai em jatos de ar pelas narinas de
parlamentares. Essa é a voz da bancada ruralista formada por 214 deputados e 14
senadores, que querem anular os direitos constitucionais dos índios. Seus
"argumentos" são relinchos, bater de cascos, coices no ar e, por
isso, não conseguem convencer os brasileiros.
Nas principais cidades do país
ocorreram manifestações contra esta ofensiva do agronegócio. Nesta semana, a
Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) organizou Mobilização Nacional
em defesa dos direitos indígenas. A parte sadia do país disse um rotundo
"não" ao pacote de dezenas de Projetos de Emenda Constitucional (PEC)
ou Projetos de Lei Complementar (PLP) que tramitam no Congresso apresentados
pela bancada ruralista e pela bancada da mineração.
Esses parlamentares querem
exterminar as culturas indígenas não por serem gratuitamente malvados,
perversos e cruéis, mas porque pretendem abocanhar as terras tradicionalmente ocupadas
pelos índios. Para ampliar a oferta de terras ao agronegócio, lançam ofensiva
destinada a mudar até cláusulas pétreas da Constituição. Exibem
despudoradamente seus planos em discursos e através da mídia como os artigos na
Folha de São Paulo da senadora Kátia Abreu (PSD-TO vixe, vixe), a
muuuusa da bancada ruralista e do deputado Luis Carlos Heinze (PP-RS vixe
vixe).
Causa
inconfessável
Quase todos os parlamentares da
bancada ruralista tiveram suas campanhas financiadas por empresas de capital
estrangeiro como Monsanto, Cargill e Syngente, além da indústria de armas e
frigorífico, conforme dados da Transparência Brasil. Afinal, é disso que
eles vivem, dessa promiscuidade com o capital estrangeiro, sem o qual não
poderiam exportar e comprar produtos. Querem agora liberar as terras indígenas
para grandes empresas brasileiras e estrangeiras plantarem monoculturas com
agrotóxicos, construir barragens no rios e extrair minérios para a exportação.
No entanto, os ruralistas não
podem confessar aos eleitores que seu objetivo é o lucro, apenas o lucro, nada
mais que o lucro. Inventam, então, que estão defendendo "os interesses
nacionais" e classificam como "anti-Brasil" os que não concordam
com eles. Essa é uma velha tática, usada no século XIX, quando o agronegócio da
época acusava os que defendiam a abolição dos escravos de representarem
interesses estrangeiros. Trata-se de ganhar para uma causa indefensável os
brasileiros crédulos que amam sua Pátria. Aí exploram o nacionalismo e apostam
na desinformação.
No artigo com título sugestivo - "Causa
Inconfessável" - a senadora Kátia Abreu tenta desqualificar os índios
e seus aliados com uma argumentação esdrúxula. Sem citar fontes, sem dizer de
onde tirou a informação, ela jura que "são mais de 100 mil ONGs, a maioria
estrangeira, associadas a dois organismos ligados à Igreja Católica: o CIMI
((Conselho Indigenista Missionário) e a CPT (Comissão Pastoral da Terra)".
E por que cargas d'água milhares
de ONGs estrangeiras defenderiam as terras indígenas? Na maior cara de pau,
ofendendo a inteligência do leitor, a senadora Kátia Abreu, ousa dizer que elas
querem destruir a agricultura brasileira. Comete um erro vergonhoso para uma
parlamentar ao confundir nação com estado. Exibe sua ignorância deixando no
chinelo o Tiririca:
"Os financiadores são
países que competem com a agricultura brasileira e que cobiçam nossas riquezas
minerais e vegetais. São os mesmos que, reiteradamente, defendem que essa parte
do território nacional deve ser cedida, e os brasileiros índios, transformados
em nações independentes da ONU".
Tudo nebuloso, deseducativo,
desinformativo. A senadora não dá nomes nem aos bois nem às vacas, não diz
quais são esses países, não diz quem quer decepar os territórios indígenas do
Brasil e omite que as terras indígenas pertencem, constitucionalmente, à União
e não aos índios. A "causa" dos ruralistas é, realmente,
"inconfessável": cada vez que uma medida prejudica seus lucros, dizem
que "é ruim para o Brasil", quando favorece "é bom para o
Brasil". O Brasil é a conta bancária deles. Sem confessar a origem dos
recursos que financiam os ruralistas, a senadora faz dos índios um tábua de
tiro ao alvo:
"É do mais alto interesse
nacional - sobretudo do interesse dos próprios índios - saber quando, de onde
vêm e como são gastos os millhões de dólares que sustentam a ação deletéria
dessas organizações, que fazem dos índios escudos humanos de uma causa
inconfessável".
Cavaleira
da desesperança
"É hora de defender o
Brasil" berra o deputado Luis Carlos Heinze no título de
seu artigo (3/10), que reproduz o mesmo papo furado, a mesma lenga-lenga,
excluindo os índios da comunhão nacional. Ataca a FUNAI - Fundação Nacional do
Índio - por identificar "pretensas terras indígenas" contra os
ruralistas que ele diz serem "os legítimos detentores de terras". E
faz eternas juras de que está defendendo a pátria ameaçada por índios e por
ONGs.
Nunca foi tão apropriada a
conhecida frase do escritor inglês do século XVIII, Samuel Johnson, aclimatada
por Millor Fernandes, no século XX, ao nosso contexto: "O patriotismo é
o último refúgio dos canalhas" - escreveu Johnson. "No Brasil,
é o primeiro", acrescentou Millor.
A senadora, que se diz católica,
bate na mesma tecla. Escreve que os defensores dos direitos indígenas "exercem
notória militância política, de cunho ideológico, sob a inspiração da Teologia
da Libertação, de fundo marxista". Está zangada com a Igreja, que ela
quer defendendo os interesses dos ruralistas e não dos despossuídos, dos
injustiçados, dos espoliados. Esculhamba ainda com a FUNAI "aparelhada
por antropólogos que compartilham a mesma ideologia".
Mas não se limita aí a cavaleira
da desesperança. De arma em riste, ataca outros "inimigos". Ela está
convencida de que "além das ONGs e das instituições como o CIMI e a
CPT, há dois órgãos voltados para a defesa dos índios: a já citada Funai e a
FUNASA, incumbida da saúde e da ação sanitária nas tribos". Kátia é do
tempo em que ainda se dizia que índios vivem em tribos.
"Seriam as terras destinadas
à agricultura a causa do sofrimento dos índios?" -
pergunta em seu artigo. E ela mesma responde: "Quem quiser que tire
suas conclusões: os índios brasileiros dispõem de extensão de terra de dar
inveja a muitos países". Se um país que é um país sente inveja,
imaginem os ruralistas. Por isso, a voz dela, que é a mais estridente no Senado
clama:
- Os índios não precisam de terra
e sim de assistência social.
Ela chama de "invasão"
a resistência dos índios em não permitir que seus territórios sejam apropriados
pelo agronegócio e anuncia: "Para reagir ao avanço dessas invasões,
apresentei ao Senado projeto de lei que suspende processos demarcatórios de
terras indígenas sobre propriedades invadidas pelos dois anos seguintes à sua
desocupação".
Foi contra essas medidas do
agronegócio e contra esses argumentos preconceituosos e retrógrados que
manifestantes se insurgiram em manifestações pacíficas realizadas em Brasília,
no Rio, em Belo Horizonte e nas principais cidades brasileiras. Em São Paulo, a
manifestação foi aberta pelos txondaro guarani e contou com a adesão de
muitos antropólogos, estudantes, professores.
As imagens da manifestação em São
Paulo foram registradas e editadas por Marcos Wesley de Oliveira para o
Instituto Socioambiental. Em plena Avenida Paulista, ele entrevistou lideranças
indígenas - Megaron Txucarramãe (kayapó), Renato Silva (guarani), Natan Gacán
(xokleng), antropólogos - Manuela Carneiro da Cunha e Márcio Silva (USP), Maria
Elisa Ladeira (CTI), Lúcia Helena Rangel (PUC/SP), Beto Ricardo (ISA) e os
líderes quilombolas do Vale da Ribeira - Nilce Pereira e Ditão.
- Vocês não estão sozinhos -
disse a mestranda em Antropologia, Ana Maria Antunes Machado, se dirigindo aos
Yanomami, enquanto apontava os manifestantes da Avenida Paulista. Ela falou com
bastante fluência em língua Yanomami, pois viveu com eles, com quem trabalhou
mais de cinco anos como assessora pedagógica, antes de atuar no Observatório de
Educação Indígena coordenado pela pesquisadora Ana Gomes (UFMG). O fato tem
forte carga simbólica, por se tratar de alguém tão brasileira quanto a Katia
Abreu, mas que, para ouvir os índios e com eles dialogar, aprendeu a língua
Yanomami e foi capaz de reverenciá-los.
*
Jornalista e historiador
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