O “saber fazer” e o “fazer”
O que é mais importante em uma atividade, notadamente intelectual (no
caso que me interessa, em literatura): poder contar com uma pessoa que “saiba
fazer”, em tese (no nosso caso, um bom texto literário), por ser versada em
teoria; ou com outra, sem a mínima base teórica, mas que efetivamente já tenha
produzido (baseada exclusivamente no talento e na intuição) alguma obra
interessante, correta e competente? Eu, se sou dono de uma editora, sequer
vacilo. Escolho, de imediato, o segundo.
O sujeito que “sabe fazer” é mero potencial. Pode ou não produzir algo
que valha a pena publicar. Mas o que efetivamente “faz”, é mais do que mera
promessa: é realidade. Deixo claro, antes que me acusem de advogar em causa
própria, que não sou contrário à teoria, longe disso. Creio que o escritor
completo é o que tem sólida base teórica e alia, a ela, a prática. Ou seja, que
saiba fazer e efetivamente faça.
No meu caso, estudei, com afinco e dedicação, teoria literária (portanto,
não sou leigo no assunto) e continuo estudando, pois é um aprendizado que não
tem fim. Mas não entendo que esse seja um fator fundamental que venha a
transformar alguém num bom escritor (ou, até mesmo, em escritor simplesmente).
Esse preâmbulo vem a propósito de uma discussão sobre Literatura que
tive, recentemente, com um amigo – competente e hábil crítico literário – cujo
nome prefiro não declinar, para não perder uma amizade que prezo demais. Narro
o milagre, mas omito o santo.
Tudo começou quando teci rasgados e entusiásticos elogios ao livro “O
enterro do anão”, do consagrado humorista Chico Anysio (para mim, o escritor
Francisco Anysio de Oliveira Paula Filho), o quinto que li dos dezessete que
ele já publicou. Meu amigo torceu o nariz e respondeu que me deixei influenciar
pelo prestígio público do autor, mas como humorista – sem favor algum, um dos
maiores de todos os tempos no rádio, teatro e televisão, sem dever
absolutamente nada aos nomes mais badalados dos Estados Unidos.
Depois de muito argumentar, sem que ele se convencesse, lhe perguntei se
já havia lido alguma obra do Chico. “O tocador de tuba”, por exemplo. Disse-me
que não. Emprestei-a e combinamos que voltaríamos ao assunto depois que a
lesse. Dias depois, perguntei-lhe o que havia achado. “O livro é muito bom, mas
continuo com minha opinião de que ele não é escritor. Falta-lhe base teórica”,
respondeu. Emprestei-lhe outro livro, desta vez o “Teje Preso!”, para que meu
amigo visse que a qualidade do que havia lido não era simples acaso, “sorte de
principiante”. Dias depois, a resposta foi a mesma.
Essa intransigência começou a me irritar. Emprestei-lhe o livro “Três
casos de polícia”, certo de que agora a opinião iria mudar. Para a minha
surpresa, o amigo manteve a mesmíssima opinião. Perdi as estribeiras e acusei-o
de pedante e preconceituoso. Esse, aliás, é um preconceito às avessas. Afeta
somente quem é famoso, não o escritor obscuro, óbvio. A maioria dos críticos
acha que quem se destaca em outra atividade pública qualquer, que não a Literatura,
quando lança um livro, quer somente explorar esse prestígio e nada mais. Alguns
até têm, mesmo, essa intenção. Mas não todos.
A maioria contrata profissionais do texto, em geral jornalistas, para
escrever sua biografia, ou memórias ou coisa do gênero. Não foi o caso do Chico,
claro. Ademais, ele nunca se valeu do seu imenso sucesso de tempos atrás, na
televisão. Jamais sequer insinuou que escrevia livros e muito menos apelou a
quem quer que fosse que os comprasse. Estes venderam (como água, como se diz na
gíria), portanto, por causa, apenas, da qualidade.
Não tenho razões pessoais (subjetivas, portanto) para defender o
humorista e nem ele nunca precisou de defesa. Não posso dizer que não o conhecesse
pessoalmente, pois assisti vários shows dele aqui em Campinas. Até
cheguei a entrar na fila para conseguir seu autógrafo, mas minha timidez diante
de um ídolo impediu-me de abordá-lo. Uma pena! Foi burrice minha! Ele é que não
me conheceu e certamente jamais ouviu falar de mim. Mas... deixa pra lá.
Numa das Bienais do Livro, realizada em São Paulo , conversei com
vários livreiros a respeito desse escritor (que era, de fato, e dos bons). Esses
foram unânimes em afirmar que muita gente entrou pela primeira vez na vida em
uma livraria apenas para comprar livros do Chico. Se eu fosse dono de uma
editora, portanto, faria o possível e o impossível, faria das tripas coração
para contar com ele no meu quadro de autores.
E o meu amigo, como ficou? Bem, diante da intransigência dele, não
voltamos mais a tocar no assunto. Já que o mencionei, aproveito para lhe mandar
um recado: “Ô, cara, vê se me devolve o livro ‘Três casos de polícia’. Você
sabe como fico irritado quando alguém se apropria, indevidamente, das jóias que
tenho em minha biblioteca!”. Pronto, desabafei! Se ele continuar sendo meu
amigo é por que é, de fato, o cara inteligente e sincero que sempre achei que
fosse.
Boa leitura.
O Editor
Acompanhe o Editor pelo twitter: @bondaczuk.
Nenhum comentário:
Postar um comentário