Perdas e ganhos
* Por Marco
Albertim
Pouco se lhes deu o mau cheiro do beco; cheiro de
mijo, por certo de algum bêbado que, com um resíduo de juízo, se aproveitara
dos dois postes sem luz para esvaziar a bexiga. Menos ainda a escuridão
propícia a assaltos. Estavam remoendo, os dois, sobre como deveriam fazer o
balanço do dia, precisar despesas e ganhos. Ele nutria a esperança de obter um
troféu, por minguado que fosse, por ter feito, nos seus limites, os deveres
prescritos por ela. Ela, sem vinco nas pálpebras, os olhos serenos, ruminando
no que dizer, pouco se importaria se só na manhã seguinte um bom dia maquinal
fosse o único sinal do restabelecimento da troca de palavra entre os dois
Primeiro ela se dirigira à beira do cais, não
fazendo caso de, com a mudança brusca de caminho, despregar-se da mão dele.
Para Tibério, a primeira perda. Para Josefina, nem perda nem ganho, mas a
reiteração de seu perfil resoluto, a recusa a qualquer sujeição.
- Alguma queixa, meu amor? - quis saber Tibério,
tirando proveito do escuro e mostrando-se capaz de manter a desenvoltura na
inhaca do mijo. A desenvoltura não mostrou-se tão inteira, visto que Josefina
não voltou a segurar a mão de Tibério.
- Por quê?
- Quero saber, tenho o direito e estou curioso.
- E eu posso responder ou não...
A sobranceria de Josefina, por certo fora soprada
pela mesquinhez de luz do fim da tarde; não da escuridão do beco, mas do
lusco-fusco acobertando todo o cais, sombreando sem licença o casario barroco,
sem traços de restauro, quase um choro no porto escasso de embarcações.
- Até que você interagiu um pouco - emendou ela.
A emenda saiu em conformidade com a presunção da
primeira resposta. O reconhecimento de que Tibério dera um pouco de si à
família de Josefina, não fora um reconhecimento, mas a concessão ao teor de
sofreguidão na pergunta de Tibério.
No jardim do hotel, a romãzeira, acima da altura
dos dois, não se deu por rendida aos propósitos do crepúsculo; as folhas
compridas, verdosas, mantiveram o diálogo de luzes com a cor prateada do mar
àquela hora; cada fruto, esverdeados, róseos, deram vida floral à blusa de
Josefina. Ela usava um tecido de algodão cuja transparência era obstruída por
desenhos de amoras dos ombros à cintura, na frente e atrás. Bem que poderia
interromper seu passo tímido e preciso, para espelhar-se na combinação de cores
da arvoreta; não seria difícil, porquanto sua silhueta fina ser de fácil
apreciação na gesticulação quase nula, em apoio às minguadas palavras.
Em vez disso, seguiu no passo miúdo sobre o
estreito caminho de pedras, com espaços gramados de um palmo entre uma pedra e
outra. Os passos de Josefina não requeriam recomendação para que não pisassem
na extensão das gramas até o muro. Do outro lado, o ruído das ondas também não
distraíram seus ouvidos.
No café da manhã, antes que pusesse na boca algum pedaço da melancia que ela cortara com trejeitos de quem cata uma pérola na concha, pediu a mão de Tibério e desejou-lhe feliz páscoa. Desacostumado, ele beijou a mão dada, crendo-se apto a absorver os votos de entendimento nos dedos finos da parelha. Quase um ganho para ele.
De volta ao quarto, Tibério confessou, meio que
rendido:
- Não tenho como não ir ao passeio com você e sua
família. Faz anos que eu não ouvia alguém me desejar boa páscoa.
Josefina explicou-lhe o significado da páscoa; não
como uma pastora nômade, nem como recomendação ao parelho no convívio com ela,
mas com a diversidade do mundo, incluindo a família dela e, de resto, ela. Por
se pôr como derradeira beneficiária, Tibério sentiu-se recuado no propósito de
se incluir num passeio de barco; num barco estreito, com bancos paralelos,
flutuando na enorme largueza do lago. A água fria, gelada, tão densa,
silenciosa e confessando parentesco com o silêncio de Tibério.
- Se eu não for ao passeio, você fica chateada?
Ela não respondeu de pronto. Inda que se mantivesse
indiferente à presença ou ausência do parelho, no barco, a demora em responder
fez crescer a suspeita de que Josefina não o queria mais perto de si, de sua
família que pela primeira vez se acercara dele.
- Eu quero que você vá. - Por fim ela respondeu;
respondeu sentenciosa, definitiva. Primeiro ganho de Tibério.
No fim da travessia do lago, o barqueiro estribou a
embarcação numa encosta de capins ralos na margem. A coberta foi tirada. O
ruído dos ferros desenroscados de um lado e de outro, confundiu-se com a
gritaria dos saguis nos oitizeiros. Dali, seguiram por um acesso estreito, o
barco quase parando. No fim, na fonte do açude, pararam para o convescote
regado a mangas, bolachas, queijos, refrigerantes e cervejas. A gelidez da
água, de comum acordo com o ar sombrio sob as árvores, a desolação dos insetos
soprando ruídos finos, escondidos, também camuflaram o acanhamento de Tibério.
Josefina, familiar ao lugar, sentou-se num tronco deitado entre uma margem e
outra.
- Gosto de ouvir o silêncio da mata - disse a
Tibério; disse sem confessar o incômodo que sentia com o silêncio dele.
No quarto, as ondas não distraíram os ouvidos de
Josefina, assim como seus braços mostraram-se avessos aos dedos de Tibério. Ele
preferiu não ficar com ela no quarto do hotel. Foi para o jardim, em seguida
voltou para convidá-la para o farol. Ela assentiu, certa de que a concessão não
traria danos ao fecho que pusera no corpo e no juízo.
A luz do farol minguada na noite farta, mostrou a
Josefina o rumo de seu juízo:
- Preciso de um tempo. - disse ela - Mas não quero
separação. Continuo em sua vida.
- Esse tempo pode desconstruir a nossa relação.
Ela não respondeu. Na volta para o hotel, segurou-o
na mão. Ele deixou os dedos soltos, entregues a qualquer contato, feito alguém
que reage apenas com balbucios mudos, passivos.
Na cama, com a curta camisola que vestira de costas
para ele, encolheu-se sob o lençol. Mencionou o nome do parelho de modo seco,
como para esconder o choro inevitável. Ele a abraçou.
Josefina despiu-se no choro convulso. Conveio que,
para mostrar-se inteira, não teria que se opor aos efeitos da alma no corpo.
Deixou-se despir da incômoda camisola, da calcinha rendada, com furos, feito
seus olhos ainda marejados. Tivera o cuidado de apagar a luz, e manter a porta
do banheiro aberta com a luz acesa. A claridade, inda que pouca, em combinação
com o anúncio de que corpo e alma por fim se dispunham à espreita de Tibério.
Ela ouviu o impacto de uma onda na parede do quarto em contato com o mar.
Convenceu-se de que também seria capaz de se jogar com fúria sobre o parelho.
Tigresa no corpo convulso, confessou no ouvido dele o prazer de ver seu corpo
dançar. Logo, os resíduos de lágrimas sumiram. Ela sorriu. Tibério creu-se
sorvendo o mel dali derramado. Para mensurar o tamanho da presa, ficou de lado.
O lençol, parte de sua margem, cobriu pela metade o sexo da parelha. A luz
vinda do banheiro focou-o, mostrando uma corola brotando balouçante; a cor
pardacenta não tirou viço da seda no miúdo tufo de cabelos. O derradeiro ganho.
Ao amanhecer, ela mesma aprontou a roupa dele em
cima da cama. Ele voltou a abraçá-la. Os dois em pé. Ela olhou-o submissa,
feliz.
- Ainda preciso de um tempo...
Tibério não quis fechar o balanço.
*Jornalista
e escritor. Trabalhou no Jornal do Commércio e Diário de Pernambuco, ambos de
Recife. Escreveu contos para o sítio espanhol La Insignia. Em 2006, foi
ganhador do concurso nacional de contos “Osman Lins”. Em 2008, obteve Menção
Honrosa em concurso do Conselho Municipal de Política Cultural do Recife. A
convite, integra as coletâneas “Panorâmica do Conto em Pernambuco” e “Contos de
Natal”. Tem três livros de contos e um romance.
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