Apocalipse no sertão
* Por
Risomar Fasanaro
A mãe serviu a sopa de palavras e
toda a família tomou-a em silêncio. Era noite. Uma noite de névoa e trevas. Tão
escura que os escombros da vida se escondiam entre as frestas do silêncio. Por
isso, nem o pai nem os filhos perceberam que ela lhes servira o que de último
lhe restara: palavras.
O pai voltava mais uma vez dos
longos túneis de suas buscas, sem encontrar sequer a si mesmo. De todos os
males, talvez o desemprego fosse para ele o de menor importância.
Todos tomaram a sopa e foram
dormir. No meio da madrugada, um dos filhos passou mal; suava frio e sentia
dores abdominais. Só poderia ser consequência daquela sopa, pensou a mulher. E
se nem isso pudessem mais comer, o que seria da família?
Resolveu que no dia seguinte iria
escolher melhor as palavras, lavá-las muito bem; quem sabe ficara alguma
impureza e por isso o pequeno passara mal?
Serviu um chá ao filho que logo
melhorou e voltou a deitar-se, pensando no que prepararia para o almoço do dia
seguinte. Não permitiria que suas revoltas substantivas, nem as (des)
conjunções da vida prejudicassem sua grande descoberta.
Agora, mais segura, poderia
dar-se ao luxo de demorar-se nessa escolha, de aprimorar suas receitas. E foi
então que escolheu a palavra de que mais gostava: saudade. Por certo, uma
palavra tão bonita não faria mal a ninguém.
Tomou-a entre as mãos, sentindo a
maciez e a doçura que dela emanavam. Lavou-a bem, deixando que reluzisse ao sol
cada curva, cada haste das letras que a compunham. Depois a temperou com sal e
limão, e sozinha, colocou-a na boca e saboreou cada letra, cada sílaba.
Sentiu-a fria na boca, e quando tentou engoli-la, foi como se de repente ela
crescesse, formasse um nó, um travo na garganta. Fez força e conseguiu que passasse
pela garganta, provocando no mesmo instante um frio, um peso no estômago que
lhe tomou o peito, com travo de fruta verde.
Algum tempo depois o mal estar
passou, mas quando menos esperava voltou a sentir o nó na garganta e uma dor no
peito dificultando-lhe a respiração, como se fosse morrer. Sentiu medo. Ainda
bem que experimentara antes de servi-la ao marido e aos filhos. E pensou: se
depender de mim, jamais eles comerão isso.
Já não sabia o que cozinhar, mas
decidiu insistir, já que nada havia para comer, até encontrar uma forma de
servir as palavras de modo que não fizessem mal.
Escolheu os vocábulos attonitta,
inamorare, inodio e acumene. Com uma faca bem afiada, provocou aférese em todas
elas. Depois, lavou-as bem em uma bacia de ágata que ganhara de uma ex-patroa,
cozinhou-as com sal, pôs coentro e serviu à família.
Mesmo com todos esses cuidados,
algumas palavras ainda eram indigestas, e no final da tarde o marido estava com
febre. Foi aí que ela resolveu podar, limpar todas as arestas, provocando
síncope, crase, haplologia e sinalefa. Ia cortando tudo e de malu fez mal, de
amare fez, amar e continuou com lepore, manica, liberare, atroce, legale,
dolore, rodador, idolatria...
O dia e a noite transcorreram
tranquilos. A família, enfim, acostumara-se à nova alimentação, e como já não
recolhia os restos da feira, passou a ser motivo de curiosidade na favela. O
que estava acontecendo? Alguém estaria lhes doando alimentos?
A mulher, sem nenhum mistério,
contou o que descobrira, e ante a descrença dos vizinhos, explicou como
preparava os alimentos. Ali mesmo explicou às outras mulheres como fazer um
refogado de dígrafos, com molho de consoantes.
É claro que ela não dava aos
ingredientes os mesmos nomes que eles receberam dos gramáticos. Jamais em toda
sua vida tivera entre as mãos uma gramática, muito menos histórica. Se lhe
dissessem que servira metaplasmos à família, por certo ficaria horrorizada, ou
riria...
-Mas onde a gente encontra esses
negócios? Perguntaram-lhe os vizinhos.
-Ora, e vocês não sabem?
Depois de ensinar onde buscar
palavras advertiu:
-Vão com cuidado. Comecem do
jeitinho que eu falei. Primeiro a, e, i, o, u. As palavras, às vezes são muito
perigosas...
Façam sopa primeiro só com
a,e,i,o,u, depois usem as outras letras, vão juntando, e só depois de bem
acostumados, usem palavras. Primeiro as pequenas, depois as grandes, ouviram?
Vão cortando, limpando, depois de um tempo vão poder comer qualquer uma. Nada
mais vai fazer mal a vocês.
A partir daquele dia, os
estômagos da favela acostumaram-se àqueles novos alimentos. Alguns dentro de
pouco tempo puderam dar-se ao luxo de comer palavras que haviam sofrido
prótese, epêntese, paragoge e anaptixe.
Tudo corria bem, nem mesmo a
polícia apareceu durante vários dias. E assim continuaria se um incidente não
viesse atrapalhar a vida daqueles moradores. É que alguns políticos resolveram
realizar ali um comício. Os moradores aguardavam ansiosos aquele evento.
E finalmente chegou o dia. Vieram
os candidatos às eleições para deputado, senador, e até, um ao governo do
Estado.
O comício teve início às
dezessete horas, mas desde as oito as pessoas começaram a chegar com suas
sacolas, para guardar lugar. Postaram-se em frente ao palanque à espera deles.
Houve empurrões, xingamentos e provocações, desde o início da aglomeração.
Todos queriam ficar bem na frente, na primeira fila.
Um garoto com ginga e feição de
quem não perde uma briga por nada desse mundo, gritava:
- Eu vou ficar é aqui, na fila do
gargarejo. E quero ver se tem valente aqui que me tire. E enquanto dizia isso,
deixava que reluzisse ao sol o brilho de uma peixeira.
Quando os candidatos chegaram e
viram todos aquela multidão reunida, gritando e pulando, ficaram maravilhados,
pois se há coisa que político gosta é de ver é plateia para seus discursos. Era
preciso saber quem era o cabo eleitoral que organizara tão bem aquele comício.
Subiram ao palanque, e deram
início aos discursos. Um deles dizia:
- Exigiremos do governo federal
uma reforma tributária e um rígido controle dos juros. Não permitiremos que se
comprometa o crescimento.
Logo depois outro dizia:
- Jamais permitiremos que a crise
nos alcance. Ela que fique por lá, pelos Estados Unidos, pela Europa, aqui ela
não entra. Nosso povo não merece e não quer mais sofrer, e a vontade do povo é
soberana. Pelo povo, tudo sacrificaremos. Cortaremos até nossa própria carne,
se preciso for!
Em seguida, o que pretendia o
cargo de governador do Estado, um sujeito magrinho, raquítico, inflamava-se
todo e, na ponta dos pés, e gesticulando muito, prometia:
-Nenhuma criança ficará sem
escola, e as secretarias da saúde e da Educação irão receber, no meu governo,
as maiores verbas do orçamento do estado. Nenhuma criança ficará sem escola.
NE-NHU-MA, eu repito. Este é um compromisso que eu assumo e que vocês poderão
cobrar lá no Palácio. Sim, porque serei eleito, com toda certeza, e então, meus
amigos, farei daquele palácio a casa do povo, onde as portas estarão sempre
abertas, para recebê-los!
As pessoas pulavam, gritavam
agarravam as palavras, as frases e as guardavam nas sacolas. Algumas eram tão
espertas, que conseguiam alcançar parágrafos inteiros.
Os oradores estavam eufóricos com
aquele público tão vibrante, e que manifestava seu entusiasmo com as mãos, os
pés, o corpo todo. E continuavam os discursos:
-Vamos restaurar a tranquilidade.
Não haverá mais seca, pois construiremos um açude a cada quilômetro deste
município. Também não haverá enchentes, pois não permitiremos que vocês percam
seus pertences, suas casas, seus familiares. Para isso temos projetos de
abastecimento de água durante o verão e de escoamento da água na época das
chuvas.
Com voz forte, um candidato a
deputado estadual dizia:
-Vamos restaurar a tranquilidade.
A população não sofrerá mais ataques de bandidos. Para isso nosso governador
aqui presente já assumiu que colocará centenas de policiais nas ruas...
Uma velhinha sentada à porta de
um armazém murmurou baixinho: mas aqui nunca houve ataque de bandidos...
Lá embaixo, o público se
engalfinhava:
-Sai daí, seu vagabundo, essa
população aí eu vi primeiro. Num toma não. É minha, dá aqui. E puxava a palavra
pela cedilha, tomando-a do outro.
-Conversa, seu filho da puta, eu
é que vi primeiro e já tinha até enfiado na sacola.. Num dou mesmo!
-E você aí, vai ficar dando chute
em mim, vai? Tomou a inflação que eu tinha agarrado no começo do comício e
agora ainda quer o crescimento, é?
-Cuidado, sua ordinária, não vem
me dando soco não. Passa o tempo todo dormindo e agora quer tirar o atraso, é?
O controle é meu.
- Eu peguei pra fazer um omelete
pro meu menino que tá com vontade faz dias...Sai daí, já avisei. Eu te dou um
chute nesse bucho que tu vai ver!
-Por que tu não pegou os
policiais que caíram ainda há pouco nos teus pés? Tu tava bem embaixo do homem
que tava falando nele...
-Tu pensa que eu sou besta, é?
Pega tu, seu lazarento!
Em poucos minutos a confusão era
tamanha, que não era possível entender mais nada do que se dizia no palanque. A
pancadaria foi tão grande que atingiu também os políticos, e esses tentaram com
seus seguranças, controlar a situação. Inútil. Todos se agrediam, e de longe só
se enxergava a poeira correndo solta.
A velhinha que estava na porta do
armazém, quando viu que um dos oradores estava caído, criou coragem e foi
devagarinho até o palanque, enfiou a mão na boca do candidato, e conseguiu
recolher ainda quentinhas , e molhadas de saliva o parágrafo inteiro:
-Puta merda, que miséria! Bando
de marginais! Tinha que ter trazido mais seguranças. Pra essa corja, só no pau!
A velhinha, ainda apanhou mais
algumas palavras daquele discurso do homem ferido, que escorreram pela terra,
envolveu-as no avental, já que não levara sacola, por considerar-se incapaz de
concorrer com os jovens no recolhimento das palavras. Depois desceu calmamente,
rindo muito, e seguiu o caminho, para o seu mocambo, com seu almoço do dia
seguinte garantido.
O restante do povo continuou
ainda brigando, e já era madrugada quando a polícia chegou e levou muita gente
presa.
Uns apresentavam hematomas,
outros sangravam e apresentavam fraturas. Clareava o dia quando os menos
atingidos voltaram para casa.
No dia seguinte, todos, mesmo os
detidos na noite anterior, felizes com a abundância, trocavam receitas pelas
ruas da cidadezinha. Esquecidos das brigas, como se nada houvesse acontecido.
Um dia de felicidade e fartura.
A lua começava a subir no
horizonte quando as primeiras pessoas começaram a passar mal: vômitos,
diarreia, convulsões, e uma fortíssima erupção no corpo todo. Em pouco tempo
todos no pequeno lugarejo tinham sido atingidos.
Chamaram o único médico do lugar
que, sozinho, não conseguiu atender a todos. Vieram ambulâncias da capital e
dos municípios vizinhos. Conduziram os doentes aos hospitais da região que
ficaram lotados com tantos pacientes. Entre os muitos internados 134 morreram,
embora os jornais noticiassem a morte de 27. Entre os mortos estavam a velhinha
do avental e a primeira mulher que descobrira as receitas e ensinara a todo o
lugarejo que era possível se alimentar com palavras.
Contudo, o mistério permaneceu:
como é que pessoas tão fortes, acostumadas a comer até os restos que recolhiam
das feiras, tinham morrido tão rápido?
Para os médicos aquelas pessoas
tinham sido vítimas de algum vírus desconhecido, e embora os cientistas
tivessem pesquisado muito, jamais descobriram o que causara a intoxicação e a
morte de tantas pessoas...
* Jornalista, professora de Literatura
Brasileira e Portuguesa e escritora, autora de “Eu: primeira pessoa,
singular”, obra vencedora do Prêmio Teresa Martin de Literatura em júri
composto por Ignácio de Loyola Brandão, Deonísio da Silva e José Louzeiro. Blog
http://risomarfasanaro.blogspot.com
(Risomar)
Realismo fantástico com muita iluminação e criação. Lembrou-me "Incidente em Antares", com seus mortos vivos. A morte pode ser explicada pelo conteúdo dos discursos. Falsidade deve ser veneno mortal.
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