E que vizinha...
* Por Lêda Selma
Nunca morei em fazenda, aliás, nem mesmo em cidade do interior, apesar de interiorana. A bem da verdade, interiorana, apenas, de nascimento. Vim para Goiânia e fiquei. Para assentar pouso definitivo: enraizar-me, florescer e frutificar.
Pois é, embora não tenha desfrutado, jamais, de qualquer intimidade rural, sempre ouvi histórias sobre o companheirismo e a camaradagem naquelas antigas fazendas, onde quase todos eram compadres, no mínimo, duas vezes. A do meu avô materno (bem entendido, uma delas), a Boa Sorte, era ponto de chegada e de ficada de amigos e forasteiros, recebidos, sempre, com muita festança e hospitalidade.
Os vizinhos, então, eram “de casa” e, portanto, ai de quem usasse de cerimônia. Assim, o troca-troca de gentilezas verbais, gestuais e comestívas, praticamente, ritualística. E não era rara, mesmo naquele tempo em que o fio da barba selava o combinado pela palavra, a figura do espertinho ou, até mesmo, do aproveitador.
Nhá Piedade, senhora de fartas e balofas carnes, rechonchudos e balançantes seios, viúva convicta de nhô Simplício, sua meeira na pouca terra, nos parcos recursos e nos muitos filhos, destacava-se pela perspicácia e pelo espírito arrojado. Senão para o trabalho, pelo menos, para garantir, à sua moda e à custa das amigas e das comadres, o sustento da prole (a exemplo das ancas desengonçadas, nem um pouco modesta).
– Bons-dias, siá, vim fazer uma visitinha rápida, só pra não desacostumar o costume, sabe? E que Deus seja louvado!
– Seja, comadre, seja! E também que Ele tenha piedade de mim, ou melhor, de nós, no caso de algum carecimento; melhor um pedido preventivo que um remediativo, não é mesmo?
– Eita comadre, sempre cautelosa! Pois é, pedir nunca é demais. E por falar nisso, dei uma espiada de soslaio na despensa da comadre e, Deus seja louvado!, uma abundância de inchar a boca... Aquela conserva ali, então, hum...!, tá no maior desfrute com a compota. E as duas safadinhas não param de olhar pra mim, se insinuando, me instigando a modestas pretensões... A comadre não vai se importar se eu, me valendo da insistência de ambas, e aproveitando o assunto sobre pedidos, fizer o meu, pois vai?
A visitada já conhecia, de velho, a estratégia da visitante: mal chegava, despachava os olhos para a lida, ou seja, para bisbilhotarem tudo; vistoria completa. Depois, era só lascar, de uma tacada só, o pedido. Assim, tornava-se impossível qualquer recusa, pois o desejado já havia sido, previamente, localizado e apontado por ela; requisitá-lo, portanto, apenas, o golpe final.
Dessa forma, nhá Piedade, de visita em visita, assegurava a sobrevivência e o crescimento dos filhos. Um dia aqui, outro mais adiante... e, de pedido em pedido, a matrona enchia o saco, a paciência dos vizinhos e a pança dos meninos.
– Hum, que cheiro gostoso de café torrado, comadre Malvina! E aquelas fornalhas de biscoito, ali no forno, doidinhae pra eu levar uma delas pros meus bacuris famintos...?! Ah! e quanto pequi acolá, hem?! No pontinho, só esperando eu tirar os pobres das cascas e dar a eles o destino das panelas.
– Deus seja louvado, comadre Generosa..
– Amém, comadre!
– A louvação é praquele pilão ali, ó, cheio de paçoca, comadre! Me dê cá um bocado, me dê.
– Escute aqui, mulher pidona, se atipe, ora! A gente dá isso, a comadre quer aquilo. Só falta lhe dar o sorriso e a senhora querer os dentes; lhe dar a saia e a comadre querer as búndegas, só pra descansar as suas!
Momento poético:
Silêncio é vastidão do nada
e poesia, um colibri verdourado,
com hálito de primavera,
a polinizar desertos e escuridões.
• Poetisa e cronista, licenciada em Letras Vernáculas, imortal da Academia Goiana de Letras, baiana de Urandi, autora de “Das sendas travessia”, “Erro Médico”, “A dor da gente”, “Pois é filho”, “Fuligens do sonho”, “Migrações das Horas”, “Nem te conto”, “À deriva” e “Hum sei não!”, entre outros.
* Por Lêda Selma
Nunca morei em fazenda, aliás, nem mesmo em cidade do interior, apesar de interiorana. A bem da verdade, interiorana, apenas, de nascimento. Vim para Goiânia e fiquei. Para assentar pouso definitivo: enraizar-me, florescer e frutificar.
Pois é, embora não tenha desfrutado, jamais, de qualquer intimidade rural, sempre ouvi histórias sobre o companheirismo e a camaradagem naquelas antigas fazendas, onde quase todos eram compadres, no mínimo, duas vezes. A do meu avô materno (bem entendido, uma delas), a Boa Sorte, era ponto de chegada e de ficada de amigos e forasteiros, recebidos, sempre, com muita festança e hospitalidade.
Os vizinhos, então, eram “de casa” e, portanto, ai de quem usasse de cerimônia. Assim, o troca-troca de gentilezas verbais, gestuais e comestívas, praticamente, ritualística. E não era rara, mesmo naquele tempo em que o fio da barba selava o combinado pela palavra, a figura do espertinho ou, até mesmo, do aproveitador.
Nhá Piedade, senhora de fartas e balofas carnes, rechonchudos e balançantes seios, viúva convicta de nhô Simplício, sua meeira na pouca terra, nos parcos recursos e nos muitos filhos, destacava-se pela perspicácia e pelo espírito arrojado. Senão para o trabalho, pelo menos, para garantir, à sua moda e à custa das amigas e das comadres, o sustento da prole (a exemplo das ancas desengonçadas, nem um pouco modesta).
– Bons-dias, siá, vim fazer uma visitinha rápida, só pra não desacostumar o costume, sabe? E que Deus seja louvado!
– Seja, comadre, seja! E também que Ele tenha piedade de mim, ou melhor, de nós, no caso de algum carecimento; melhor um pedido preventivo que um remediativo, não é mesmo?
– Eita comadre, sempre cautelosa! Pois é, pedir nunca é demais. E por falar nisso, dei uma espiada de soslaio na despensa da comadre e, Deus seja louvado!, uma abundância de inchar a boca... Aquela conserva ali, então, hum...!, tá no maior desfrute com a compota. E as duas safadinhas não param de olhar pra mim, se insinuando, me instigando a modestas pretensões... A comadre não vai se importar se eu, me valendo da insistência de ambas, e aproveitando o assunto sobre pedidos, fizer o meu, pois vai?
A visitada já conhecia, de velho, a estratégia da visitante: mal chegava, despachava os olhos para a lida, ou seja, para bisbilhotarem tudo; vistoria completa. Depois, era só lascar, de uma tacada só, o pedido. Assim, tornava-se impossível qualquer recusa, pois o desejado já havia sido, previamente, localizado e apontado por ela; requisitá-lo, portanto, apenas, o golpe final.
Dessa forma, nhá Piedade, de visita em visita, assegurava a sobrevivência e o crescimento dos filhos. Um dia aqui, outro mais adiante... e, de pedido em pedido, a matrona enchia o saco, a paciência dos vizinhos e a pança dos meninos.
– Hum, que cheiro gostoso de café torrado, comadre Malvina! E aquelas fornalhas de biscoito, ali no forno, doidinhae pra eu levar uma delas pros meus bacuris famintos...?! Ah! e quanto pequi acolá, hem?! No pontinho, só esperando eu tirar os pobres das cascas e dar a eles o destino das panelas.
– Deus seja louvado, comadre Generosa..
– Amém, comadre!
– A louvação é praquele pilão ali, ó, cheio de paçoca, comadre! Me dê cá um bocado, me dê.
– Escute aqui, mulher pidona, se atipe, ora! A gente dá isso, a comadre quer aquilo. Só falta lhe dar o sorriso e a senhora querer os dentes; lhe dar a saia e a comadre querer as búndegas, só pra descansar as suas!
Momento poético:
Silêncio é vastidão do nada
e poesia, um colibri verdourado,
com hálito de primavera,
a polinizar desertos e escuridões.
• Poetisa e cronista, licenciada em Letras Vernáculas, imortal da Academia Goiana de Letras, baiana de Urandi, autora de “Das sendas travessia”, “Erro Médico”, “A dor da gente”, “Pois é filho”, “Fuligens do sonho”, “Migrações das Horas”, “Nem te conto”, “À deriva” e “Hum sei não!”, entre outros.
Incomoda e muitos querem acabar com a festa, no entanto vão aguentando em nome da boa vizinhança. Mas quem suporta?
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