domingo, 19 de fevereiro de 2012







Incerta

* Por Marco Antonio Araújo


O prefeito chegou de repente. Logo na hora que o jornal estava lá, escancarado em cima da mesa, bem na página do futebol. Se ao menos fosse o Diário Oficial, as licitações da Secretaria de Esportes, ainda dava pra disfarçar. Mas não: eu ali, largadão, folgado, o nariz enfiado na tabela do campeonato. Não teve jeito, tive que levantar depressa e fechar o jornal, guardar na gaveta, mesmo sabendo que já era tarde, todo mundo viu, não ia adiantar nada.

Até hoje me pergunto por quê eu fechei a porra do jornal. Que humilhação. Eu devia era ter me levantado, claro, afinal era um prefeito, mas nunca esconder o jornal como se fosse uma pacoteira de maconha, um radinho de pilha, revista de sacanagem, sei lá. Teria sido mais decente fazer de conta que não estava acontecendo nada, cumprimentar aquela gente toda e deixar aquele jornalzão enorme lá, quietinho.

-Qual é o seu nome?
-José Roberto Feliciano de Souza, seu prefeito.

Até hoje eu me pergunto por quê dei meu nome inteiro. José Roberto, pronto. Sobrenome é só pra polícia, pro médico, preencher ficha, sei lá. Só faltou dar o número do RG e do registro funcional. Ô, babaca! Um dia eu aprendo a não ir logo ficando de quatro antes mesmo que alguém me mande.

-Por que, em vez do senhor estar lendo o jornal, não estava trabalhando, como seus colegas?
-znhuminhunhanain...
Até hoje eu me pergunto por quê não consegui abrir a boca e dizer alguma coisa, qualquer que fosse, mesmo inventando, sei lá.
-Eu lhe fiz uma pergunta.

Deve ter sido bem palerma a cara que eu fiz. Mas também, pó, ninguém da repartição teve coragem de dizer que também lia o jornal, que inclusive deixavam sempre esparramado, amassado, que só eu comprava. Puta injustiça. Me deu vontade de dedurar todo mundo, mas isso não se faz, eu só estava lendo um jornalzinho imbecil, mas também o que eu poderia estar fazendo às onze da manhã de uma segunda-feira e numa repartição pública? Se eu já tivesse começado a trabalhar, o que é que eu faria à tarde, quando não tem mais jornal pra ler? E o Luís, sortudo, que tinha acabado de fazer palavra-cruzada e saiu para tomar o terceiro cafezinho? E o Avelino, que se abrisse a boca matava o prefeito só com o bafo? E a Dejanira, que logo nesse dia não levou aquele tricô que não acabava nunca? Tinha que ser eu o otário?

-Os senhores estão vendo um lamentável exemplo da ociosidade do funcionalismo público, fruto do empreguismo e do nepotismo de meus antecessores. Essa imoralidade vem sangrando os cofres do município, e com ela pretendo acabar logo no início da minha gestão. Enfrentarei essa máfia corporativista com a mesma determinação com que enfrentei meus inimigos de campanha. Registrem, senhores, o início de uma nova era, em que impostos não mais serão desviados para sustentar marajás e sinecuras.

Até hoje me pergunto por quê deixei fotografar, filmar, enfiar gravador na minha boca, aquele diabo todo. E aquela gostosona da TV, que me perguntou o que é que eu tava sentindo naquela hora, tem dó, por que não dei um tapão no microfone dela, ou disse que minha mulher ia morrer de vergonha, pra ela parar com isso, sei lá? Eu sabia que todo mundo ia ver aquilo, ia virar motivo de gozação, eu tava fudido.

-Senhor secretário, providencie a abertura de inquérito administrativo e proponha a demissão sumária desse elemento que denigre a imagem do servidor público municipal. Precisamos extirpar esse câncer. Que sirva de exemplo.

Até hoje eu me pergunto exemplo de quê. Tirando aquela semana, em que a seção inteira virou o prédio de cabeça pra baixo procurando algum serviço pra fazer, depois voltou tudo como era antes. A única diferença é que eu não compro mais jornal nem que me arraste. A despesa agora é do Avelino, que adora ler classificado pra procurar algum negócio da China e vive pedindo pra eu rachar o preço com ele. Eu não. To fora dessa. Deixei de ser bobo. Ta certo que todo mundo ficou do meu lado na hora de depor lá no processo. Mas ficou tudo muito bem pago com aquela rodada de cerveja por minha conta. Só sei que eu quase dancei e na hora do aperto, quando eu mais precisei, não teve um cristão que me defendesse do prefeito e da entrevista. Só fiquei eu, falando bobagem pra reportagem, parecendo bandido, traficante de droga, desabrigado de chuva, que nem aquele povinho que param no meio da rua pra perguntar de política e o infeliz diz qualquer coisa bem burra, algo assim bem cretino, que eu nem lembro, sei lá.

Maio 1993.


• Escritor

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