De virtudes e defeitos
A virtude e os defeitos de caráter e de personalidade convivem, em graus variáveis, no âmago de todos nós. Ninguém é totalmente mau, e o tempo todo, por maiores atrocidades que cometa. Ocorre que em alguns, as virtudes não aparecem, tamanhos são seus atos de violência e de vilania. Quanto aos virtuosos, mesmo que jamais manifestem por atos o mal latente que trazem dentro de si, mas que conseguem não dissimular, mas dominar, têm, certamente, estas deficiências. São tidos e havidos (e de fato são) como santos pelos atos que praticam e não pelos pensamentos ruins que nutrem, interditos a testemunhas.
Essa questão sempre me fascinou e se constitui, em última análise, na matéria-prima de todos os escritores, na elaboração de enredos e, principalmente, de personagens. O que é a literatura se não um desfile de virtudes e de defeitos, de bondade e de maldade, de lealdade e de traição, de heroísmo e de covardia, a vai por aí afora? O objeto de nossa atenção e descrição é, em última análise, o homem, em sua essência e, principalmente em suas ações. Trata-se de um tema inesgotável, que comporta tratados e mais tratados, sem que seja ao menos “arranhado”.
Tomemos, meio que aleatoriamente, a questão da lealdade. Pode-se dizer, em relação ao seu oposto, que a pior forma de deslealdade que uma pessoa pode ter é a de agir contra as próprias convicções e princípios. Quem toma essa atitude o faz, salvo uma ou outra exceção, por covardia, bajulação a algum superior hierárquico ou para obter qualquer espécie de vantagem imediata. Sabe que essa postura é errada e condenável, mas o desejo de “lucrar” de alguma forma prevalece e cala a consciência (ou, pelo menos, tenta calá-la).
Mas se essa pessoa (não raro intrinsecamente virtuosa) não consegue ser leal sequer consigo, não o será com ninguém. O que trai as próprias convicções, não importa por qual razão, trairá, fatalmente, sem pestanejar, qualquer pessoa no mundo – esposa, filhos, pais, amigos, causas etc. – se e quando isso lhe convier. A má-fama, contudo, é como fogo em capinzal seco: alastra-se com a velocidade do pensamento. Em pouco tempo, essa pessoa será (justamente) segregada e não merecerá a confiança de quem quer que seja. Pudera!
William Shakespeare aconselha, nestes magníficos versos: “Mas, sobretudo, sê leal contigo mesmo,/e seguir-se-á, tal como a noite segue o dia,/que então não poderás ser falso com os outros./ Adeus, que minha bênção faça amadurar/em teu espírito os conselhos que te dei”. Será que fará? Não, se o interesse pessoal for prevalente (e em 99% dos casos é).
Outro aspecto que me chama a atenção e me faz refletir bastante, é o da crueldade. Há pessoas que têm prazer doentio (para elas inigualável) no sofrimento alheio. Claro, trata-se de uma tara, nem sempre detectada e nem admitida e, portanto, passiva de cura. Para se curar qualquer mal, do corpo ou da alma, este tem que ser, antes de tudo, diagnosticado e esse diagnóstico tem que ser rigorosamente preciso. Geralmente atribuímos a prática de atos hediondos aos fortes, que se prevaleceriam da sua força, para esmagar quem não lhe pudesse se opor. Engano de quem pensa assim. Nesse aspecto, concordo com o escritor, sociólogo, humorista e roteirista Leo Rosten.
Em seu livro “De médico e de louco” (não sei se lançado no Brasil, mas creio que4 não), esse autor afirma: “Aprendi que os fracos é que são cruéis, e que apenas dos fortes pode-se esperar brandura. Cheguei a compreender que não é verdade que ‘o covarde morre mil mortes, enquanto o corajoso morre apenas uma’. Acho que é o contrário: o corajoso é que morre mil mortes. Porque é a imaginação que nos faz covardes. A coragem, penso, é a capacidade de enfrentar o que pode ser imaginado”. Temo, pois, mais os fracos (embora não só eles), que recorrem à arma da deslealdade, da surpresa, da traição, para compensar sua fraqueza e covardia, do que os fortes que, mesmo que queiram me agredir, fazem-no de peito aberto, propiciando-me a oportunidade ou de defesa ou de fuga.
Os heróis, cabe a observação, não nascem assim. Sequer se forjam. Nem mesmo têm consciência de que são dotados de coragem para praticar atos admiráveis. São, na verdade, frutos da ocasião. Todos podemos sê-lo, um dia, dependendo das circunstâncias, e de saber agir com determinação, no momento certo, quando formos exigidos para tal ou quando aparecer oportunidade para tanto. Todavia, estas são raríssimas.
Já que não somos heróis (ainda), contudo, não precisamos ser covardes. As oportunidades para a covardia, ao contrário do heroísmo, são muitas, quase infinitas, praticamente diárias ao longo da vida. Mas só depende de nós não sermos covardes em nenhuma ocasião. A maior das covardias, na minha visão, é a omissão. É deixar de fazer o que poderíamos (e deveríamos) ter feito, por medo, indiferença, egoísmo ou qualquer outro motivo correlato. O escritor René Bazin escreveu a respeito: “Só duas ou três vezes nos aparece, na vida, uma oportunidade para mostrar que somos bravos. Mas temos, diariamente, várias ocasiões para não ser covardes”.
Não raro exigimos dos outros muito mais do que eles podem dar. Não os encaramos como seres humanos que são, dotados das mesmas vulnerabilidades e fraquezas que nós. Falta-nos, pois, o devido senso de proporção. Mesmo que não nos julguemos cruéis, carecemos de uma das principais características que atribuímos a Deus (aqueles que acreditam Nele, claro): infinita misericórdia. Agimos, na maioria das vezes, sem sequer nos darmos conta, de forma exatamente oposta. Somos implacáveis em nossas exigências de perfeição alheia. E nos sentimos injustiçados quando a exigem de nós.
Morris West escreveu a respeito, no romance “A Estrada Sinuosa”: “A verdade? Uma dedicação sagrada, mas um serviço mal-agradecido. Justiça? Uma deusa cega cuja balança nunca se equilibra perfeitamente. Orgulho? Ambição? Vaidade? Tudo isso tem importância num homem, mas não se explica. Escolhe-se uma profissão em que se deseja triunfar. Apreciam-se as suas recompensas. Aceitam-se as suas limitações. Compartilha-se a responsabilidade dos seus males. Um homem e a sua obra têm de ser julgados no estado e condição a que ele pertence. O próprio Deus Todo Poderoso tempera a justiça absoluta com uma infinita misericórdia”. Por que nós, que somos tão imperfeitos, não fazemos o mesmo?
Em teoria, ao menos potencialmente, todas as deficiências de caráter, de personalidade ou de conduta citadas, como a deslealdade, a crueldade, a omissão etc.etc.etc. podem, se não serem eliminadas, permanecerem, pelo menos, sob o controle, sem que as manifestemos em nossos atos. Muitos conseguem isso. Por conseguirem, são alçados à condição de santos, mesmo com todos esses defeitos latentes.
Pergunto, todavia: quais são os verdadeiros males que nos afligem, aqueles inevitáveis, que existem desde o surgimento do homem e que sempre existirão, por mais que se aja para que sejam extirpados? De acordo com a escritora Marguerite Yourcenar, com a qual concordo, são “a morte, a velhice, as doenças incuráveis, o amor não correspondido, a amizade recusada ou traída, a mediocridade de uma vida menos vasta que os nossos projetos e mais enevoada que os nossos sonhos”.
Há outros males, sem dúvida. Mas são perfeitamente evitáveis. Podem, pelo menos em teoria, ser eliminados da Terra, com uma educação generalizada, universal e correta, com o cultivo de valores, com a consciência da necessidade da solidariedade em relação aos mais frágeis, com o irrestrito respeito aos direitos alheios, com o cuidado à natureza e ao Planeta em que habitamos e, sobretudo, com a substituição do insensato egoísmo pelo absoluto altruísmo. Tudo isso é possível? Potencialmente, sim! Mas na prática...
Boa leitura.
O Editor.
Acompanhe o Editor pelo twitter: @bondaczuk
A virtude e os defeitos de caráter e de personalidade convivem, em graus variáveis, no âmago de todos nós. Ninguém é totalmente mau, e o tempo todo, por maiores atrocidades que cometa. Ocorre que em alguns, as virtudes não aparecem, tamanhos são seus atos de violência e de vilania. Quanto aos virtuosos, mesmo que jamais manifestem por atos o mal latente que trazem dentro de si, mas que conseguem não dissimular, mas dominar, têm, certamente, estas deficiências. São tidos e havidos (e de fato são) como santos pelos atos que praticam e não pelos pensamentos ruins que nutrem, interditos a testemunhas.
Essa questão sempre me fascinou e se constitui, em última análise, na matéria-prima de todos os escritores, na elaboração de enredos e, principalmente, de personagens. O que é a literatura se não um desfile de virtudes e de defeitos, de bondade e de maldade, de lealdade e de traição, de heroísmo e de covardia, a vai por aí afora? O objeto de nossa atenção e descrição é, em última análise, o homem, em sua essência e, principalmente em suas ações. Trata-se de um tema inesgotável, que comporta tratados e mais tratados, sem que seja ao menos “arranhado”.
Tomemos, meio que aleatoriamente, a questão da lealdade. Pode-se dizer, em relação ao seu oposto, que a pior forma de deslealdade que uma pessoa pode ter é a de agir contra as próprias convicções e princípios. Quem toma essa atitude o faz, salvo uma ou outra exceção, por covardia, bajulação a algum superior hierárquico ou para obter qualquer espécie de vantagem imediata. Sabe que essa postura é errada e condenável, mas o desejo de “lucrar” de alguma forma prevalece e cala a consciência (ou, pelo menos, tenta calá-la).
Mas se essa pessoa (não raro intrinsecamente virtuosa) não consegue ser leal sequer consigo, não o será com ninguém. O que trai as próprias convicções, não importa por qual razão, trairá, fatalmente, sem pestanejar, qualquer pessoa no mundo – esposa, filhos, pais, amigos, causas etc. – se e quando isso lhe convier. A má-fama, contudo, é como fogo em capinzal seco: alastra-se com a velocidade do pensamento. Em pouco tempo, essa pessoa será (justamente) segregada e não merecerá a confiança de quem quer que seja. Pudera!
William Shakespeare aconselha, nestes magníficos versos: “Mas, sobretudo, sê leal contigo mesmo,/e seguir-se-á, tal como a noite segue o dia,/que então não poderás ser falso com os outros./ Adeus, que minha bênção faça amadurar/em teu espírito os conselhos que te dei”. Será que fará? Não, se o interesse pessoal for prevalente (e em 99% dos casos é).
Outro aspecto que me chama a atenção e me faz refletir bastante, é o da crueldade. Há pessoas que têm prazer doentio (para elas inigualável) no sofrimento alheio. Claro, trata-se de uma tara, nem sempre detectada e nem admitida e, portanto, passiva de cura. Para se curar qualquer mal, do corpo ou da alma, este tem que ser, antes de tudo, diagnosticado e esse diagnóstico tem que ser rigorosamente preciso. Geralmente atribuímos a prática de atos hediondos aos fortes, que se prevaleceriam da sua força, para esmagar quem não lhe pudesse se opor. Engano de quem pensa assim. Nesse aspecto, concordo com o escritor, sociólogo, humorista e roteirista Leo Rosten.
Em seu livro “De médico e de louco” (não sei se lançado no Brasil, mas creio que4 não), esse autor afirma: “Aprendi que os fracos é que são cruéis, e que apenas dos fortes pode-se esperar brandura. Cheguei a compreender que não é verdade que ‘o covarde morre mil mortes, enquanto o corajoso morre apenas uma’. Acho que é o contrário: o corajoso é que morre mil mortes. Porque é a imaginação que nos faz covardes. A coragem, penso, é a capacidade de enfrentar o que pode ser imaginado”. Temo, pois, mais os fracos (embora não só eles), que recorrem à arma da deslealdade, da surpresa, da traição, para compensar sua fraqueza e covardia, do que os fortes que, mesmo que queiram me agredir, fazem-no de peito aberto, propiciando-me a oportunidade ou de defesa ou de fuga.
Os heróis, cabe a observação, não nascem assim. Sequer se forjam. Nem mesmo têm consciência de que são dotados de coragem para praticar atos admiráveis. São, na verdade, frutos da ocasião. Todos podemos sê-lo, um dia, dependendo das circunstâncias, e de saber agir com determinação, no momento certo, quando formos exigidos para tal ou quando aparecer oportunidade para tanto. Todavia, estas são raríssimas.
Já que não somos heróis (ainda), contudo, não precisamos ser covardes. As oportunidades para a covardia, ao contrário do heroísmo, são muitas, quase infinitas, praticamente diárias ao longo da vida. Mas só depende de nós não sermos covardes em nenhuma ocasião. A maior das covardias, na minha visão, é a omissão. É deixar de fazer o que poderíamos (e deveríamos) ter feito, por medo, indiferença, egoísmo ou qualquer outro motivo correlato. O escritor René Bazin escreveu a respeito: “Só duas ou três vezes nos aparece, na vida, uma oportunidade para mostrar que somos bravos. Mas temos, diariamente, várias ocasiões para não ser covardes”.
Não raro exigimos dos outros muito mais do que eles podem dar. Não os encaramos como seres humanos que são, dotados das mesmas vulnerabilidades e fraquezas que nós. Falta-nos, pois, o devido senso de proporção. Mesmo que não nos julguemos cruéis, carecemos de uma das principais características que atribuímos a Deus (aqueles que acreditam Nele, claro): infinita misericórdia. Agimos, na maioria das vezes, sem sequer nos darmos conta, de forma exatamente oposta. Somos implacáveis em nossas exigências de perfeição alheia. E nos sentimos injustiçados quando a exigem de nós.
Morris West escreveu a respeito, no romance “A Estrada Sinuosa”: “A verdade? Uma dedicação sagrada, mas um serviço mal-agradecido. Justiça? Uma deusa cega cuja balança nunca se equilibra perfeitamente. Orgulho? Ambição? Vaidade? Tudo isso tem importância num homem, mas não se explica. Escolhe-se uma profissão em que se deseja triunfar. Apreciam-se as suas recompensas. Aceitam-se as suas limitações. Compartilha-se a responsabilidade dos seus males. Um homem e a sua obra têm de ser julgados no estado e condição a que ele pertence. O próprio Deus Todo Poderoso tempera a justiça absoluta com uma infinita misericórdia”. Por que nós, que somos tão imperfeitos, não fazemos o mesmo?
Em teoria, ao menos potencialmente, todas as deficiências de caráter, de personalidade ou de conduta citadas, como a deslealdade, a crueldade, a omissão etc.etc.etc. podem, se não serem eliminadas, permanecerem, pelo menos, sob o controle, sem que as manifestemos em nossos atos. Muitos conseguem isso. Por conseguirem, são alçados à condição de santos, mesmo com todos esses defeitos latentes.
Pergunto, todavia: quais são os verdadeiros males que nos afligem, aqueles inevitáveis, que existem desde o surgimento do homem e que sempre existirão, por mais que se aja para que sejam extirpados? De acordo com a escritora Marguerite Yourcenar, com a qual concordo, são “a morte, a velhice, as doenças incuráveis, o amor não correspondido, a amizade recusada ou traída, a mediocridade de uma vida menos vasta que os nossos projetos e mais enevoada que os nossos sonhos”.
Há outros males, sem dúvida. Mas são perfeitamente evitáveis. Podem, pelo menos em teoria, ser eliminados da Terra, com uma educação generalizada, universal e correta, com o cultivo de valores, com a consciência da necessidade da solidariedade em relação aos mais frágeis, com o irrestrito respeito aos direitos alheios, com o cuidado à natureza e ao Planeta em que habitamos e, sobretudo, com a substituição do insensato egoísmo pelo absoluto altruísmo. Tudo isso é possível? Potencialmente, sim! Mas na prática...
Boa leitura.
O Editor.
Acompanhe o Editor pelo twitter: @bondaczuk
Ler sobre o impossível nos faz pensar na possibilidade e isso torna esses feitos, pelo menos imagináveis.
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