quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012







Meros rabiscos ou real simbologia urbana?


* Por Mara Narciso

Desapontamento com o homem, ou medo diante da indevida apropriação do alheio? Vários pensamentos passam pela mente de quem chega numa grande cidade e atravessa inicialmente a periferia. Nas suas paredes estão estampados os vícios e esgotos da nossa sociedade. A já feia arquitetura pobre ostenta no alto dos seus edifícios mal projetados, mal construídos e sem manutenção a imundície do tempo, o cinza escuro da poluição dos escapamentos, e os onipresentes rabiscos dos pichadores, centímetro a centímetro.
Dentro do quadrado da janela, o desfile avança mostrando as feridas sociais dos grandes centros, que já não são deles apenas, mas de todas as cidades de maior porte, de maior população e compatíveis mazelas. O visitante é agredido pela sujeira reinante, em particular pela linguagem dos muros, que assusta e enoja. O patrimônio está depredado, e a monocromática tinta preta do spray é o deus local. As edificações estão da base ao alto com imundas inscrições. A disputa pelo espaço gerou duelos mortais. É preciso invadir o espaço do outro para provar coragem.
O antigo homo sapiens, hoje homem urbano está perdido e para se encontrar age como um animal macho definindo território. Marca na horizontal, e principalmente na vertical. Quanto mais alto, maior o perigo, especialmente se for local vigiado, assinalando grande conquista. Na busca de provar quem é quem, as tribos da cidade aceitam os desafios e colocam suas marcas a cada dia mais no alto, no guarda corpo das pontes e até no topo do Cristo Redentor. Para gáudio dos depredadores de bens públicos ou não.
Cada gangue tem a sua linguagem e seus símbolos, reconhecidos pela “família”. A marca do grupo, originário de um mesmo bairro ou região da cidade, atinge o auge da fama, o degrau mais alto do pódio, numa sequência de manifestação de audácia ao colocar nos lugares inacessíveis a sua assinatura.
A feiura resultante agride aos transeuntes, que se sentem embrutecidos com a ousadia a cada dia maior dos pichadores. Em breve mancharão a lua. Enquanto alguns juntam bens materiais, os vândalos urbanos expropriam, depredam, destroem, emporcalham, e na linguagem deles isso é gesto meritório.
Mas o que dizem aquelas letras estilizadas, sobre as quais os estudiosos da Semiótica levantam suas teorias? Comunicam algo além de definir o espaço de cada um? Houve uma época em que as palavras de ordem estavam escritas nos muros, conclamando a população a se rebelar contra a repressão imposta. A inscrição se dava na madrugada vazia e silenciosa em local muito visto e ativo durante o dia. O objetivo era ser lido por um grande número de pessoas. Agora a meta é a mesma, porém a mensagem só pode ser entendida pelos iniciados, pois é quase certo que aquelas garatujas dizem algo ao grupo de origem e ao grupo desafiador.
No geral, aqueles hieróglifos bem podem ter algo em comum, e serem decifrados por alguma Pedra de Roseta. Ou não. Assim, caso a humanidade desapareça por efeito de uma bomba limpa, que não deixe detritos da carne humana, ver as inscrições poderá despertar nos futuros visitantes da Terra o desejo de descobrir o que significam. E numa sequência de perda de tempo os deuses astronautas chegarão à conclusão de que os antigos terráqueos eram simplesmente imbecis. Além de, na surdina, transformarem-se em usurpadores dos bens e da ordem públicos e privados.

*Médica endocrinologista, jornalista profissional, membro da Academia Feminina de Letras de Montes Claros e autora do livro “Segurando a Hiperatividade”-

6 comentários:

  1. Quanto à pergunta do título, sou mais a primeira opção. Não acho graça nenhuma nesse abjeto idioma, os sinais são horríveis. Coisa muito diferente é o grafite ou street art. Muito boas suas considerações, Mara. Meu abraço.

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  2. Ótimo tema, Mara. Acredito que seja a busca por visibilidade. Uma forma equivocada de buscar afirmação. Entender a cabeça do sr humano está cada dia mais complicado...

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  3. Em alguns casos existe sim uma espécie de hierarquia, de domínio territorial e pensar
    que alguns dão a vida por essa assinatura.
    Abraços

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  4. Pois é, Marcelo, a mim parecem rabiscos, mas os estudiosos dizem que têm significação.
    Sayonara, você tocou num ponto que me passou despercebido. Aparecer é o objetivo maior.
    Núbia, o ponto lembrado por você é tudo: o resultado da pichação é marco de poder e de hierarquia, como você bem mencionou.
    Pedro conseguiu uma foto que entrou perfeita na ideia geral, complementando exatamente as minhas palavras. Agradeço a ele pela perspicácia.
    Obrigada gente, pela sua passagem e leitura.

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  5. Confesso que nada entendo nem decifro. Quando vejo um muro recém pintado, lamento! Sei que a beleza será curta...
    Abraços Mara.

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  6. Também fico triste e quando é de minha propriedade, me revolto. Pintar novamente e esperar nosso embate. Os ataques são diários, e quanto mais branco, com maior velocidade é pichado.
    Obrigada, Marleuza, pela passagem.

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