Semana que valeu por um século
O homem tem evoluído, a despeito de tantos e lamentáveis recuos, através dos séculos e dos milênios, em sua relativamente curta trajetória no Planeta. Graças à linguagem, notadamente a escrita, registra há uns quatro mil anos descobertas e idéias para as gerações que o sucederão, facilitando-lhes a tarefa de acrescentar, ao que receberam, o que também descobrirem, e de corrigir equívocos, além de sanar erros do que herdaram. Sem esse recurso, ouso afirmar que não existiriam ciência e nem artes, entre outras tantas atividades do espírito, dada a fragilidade da memória humana e a efemeridade desse estranhíssimo animal.
A invenção e o desenvolvimento da escrita foi a maior e mais decisiva mudança já ocorrida em todos os tempos, fulcro de todo o posterior progresso da espécie. Só não concorda com isso quem não tem raciocínio lógico, se é quer exista quem não admita essa importância. Se existir... tal sujeito é o alienado dos alienados. A vida dos povos é caracterizada por mudanças de toda a sorte e, reitero, nem sempre positivas.
É certo que algumas seria melhor que nunca tivessem ocorrido, porquanto significaram profundo retrocesso, até que fossem corrigidas por outras, de outras gerações e a humanidade voltasse a andar para a frente, recuperando pelo menos parte do tempo perdido. Passo a passo, o Homo Sapiens evoluiu e segue evoluindo, com todos seus erros e contradições, criando soluções para problemas antigos (e, não raro, também para algumas novas dificuldades, muitas bem maiores e mais complicadas do que as recém solucionadas, por isso não resolvidas). Todavia, muda, muda e muda. Mudar é preciso, até para adaptação humana a novas e imprevistas circunstâncias.
O que ocorre na vida, lógico, se repete nas artes, que é a forma como o homem a entende e a reproduz, posto que simbolicamente. Se aquela muda, esta também tem que mudar, para que possa ser adequadamente interpretada e representada. Temo não ter sido suficientemente claro nesta reflexão. Todavia, como ela está expressa por escrito, sempre haverá a possibilidade dos leitores a esclarecerem (nem que sejam os do próximo milênio, se a humanidade ainda existir e não se destruir, destruindo também toda a obra que já foi produzida).
Este fevereiro de 2012, mês de Carnaval (e não somente no Brasil, mas principalmente nele, onde essa manifestação popular adquire características peculiares, próprias, únicas), marca um momento de profunda mudança no País, notadamente na maneira de fazer e de entender as artes. O episódio ocorreu há já nove décadas, no início do século passado, o XX, que prometia ser o “das luzes” (que, de fato, foi), mas que acabou marcado, também (e principalmente) por extrema e absurda violência, representada por duas guerras mundiais que, somadas, redundaram na morte de mais de 50 milhões de pessoas, além de centenas, quiçá milhares, de conflitos regionais, que mataram número equivalente de indivíduos. Houve momentos em que tudo levava a crer que a humanidade se extinguiria, como espécie, e que tudo e todos viraríamos pó. O risco não somente existiu, mas foi iminente.
E qual foi essa mudança, ocorrida no Brasil, mais especificamente na cidade de São Paulo, então bucólico e sonolento burgo, muitíssimo diferente do seu atual perfil, de terceira maior metrópole do mundo? Foi, sem dúvida, o que se convencionou chamar de “Semana da Arte Moderna de 1922”, que teve por palco o elegante Teatro Municipal paulistano. Estou seguro que, tanto seus organizadores, quanto os que apoiaram esse ousado movimento de rebeldia (e os que se lhe opuseram, ferrenha e fervorosamente), não tinham a menor noção de que o tal evento iria adquirir a importância que adquiriu.
O ato (ou atos, porque foram vários) tinha tudo para dar errado. Por exemplo, a cidade escolhida para acontecer não era, na época, a mais adequada. Pelo menos teoricamente, melhor seria se ocorresse no Rio de Janeiro, então não somente capital do País, mas a urbe mais populosa, que polarizava a cultura e as artes nacionais. Recorde-se que na ocasião, não existiam os veículos de comunicação de que dispomos hoje. O rádio mal engatinhava. A televisão apenas chegaria 28 anos depois, com a inauguração da TV Tupi de São Paulo, em setembro de 1950. Internet? As pessoas sequer desconfiavam o que vinha a ser um computador. Nem estradas ligando a capital paulista ao Rio existiam, porquanto a Via Dutra não havia ainda nem mesmo sido cogitada.
O movimento passou para a história como a Semana de Arte Moderna, o que faz o leitor desavisado pensar que foram sete dias literais de manifestações. Não foram. Limitaram-se a apenas três dias, 13, 15 e 17 de fevereiro. A platéia, por seu turno, não foi das mais receptivas. Pelo contrário, caracterizou-se por desabrida e quase consensual hostilidade. Pior foram os ataques na imprensa, que não poupou críticas sumamente ácidas e epítetos dos mais desabonadores.
Um dos incidentes ocorridos no Teatro Municipal, que ilustra a caráter o ânimo do público, ocorreu em 15 de fevereiro, durante a leitura do poema “Os sapos”, de Manuel Bandeira. Em vez de ouvir, educada e civilizadamente, a declamação dessa magnífica peça literária, as pessoas presentes imitaram, em coro, o coaxar do tal batráquio, encobrindo a voz de quem lia, de sorte que a leitura não fosse ouvida por ninguém e, de fato, não foi.
Escandalizada, mesmo, a platéia ficou dois dias depois, com a apresentação musical do sempre irreverente (e genial) Heitor Villa-Lobos. O compositor do “Trenzinho caipira” entrou no palco com traje a rigor, como a ocasião requeria, mas calçando num pé um sapato e, no outro, um chinelo. O público não o poupou. Vaiou-o intensamente, xingou-o de vários nomes e alguns, mais afoitos, ameaçaram subir no palco para tirá-lo dali a força. As pessoas presentes consideraram a atitude do músico escrachada e desrespeitosa. As aparências, todavia, enganam (e como!). Tempos depois ficou-se sabendo que Villa-Lobos se apresentou daquela formas não com a intenção de chocar a quem quer que fosse, mas porque estava com um incomodíssimo calo no pé calçado com o chinelo.
Muito se falará, com certeza (e muito falarei, também) sobre a Semana de Arte Moderna de 1922, que só teve (reitero) três dias, ao longo deste 2012, embora minha intenção não seja a de fazer nenhum relato histórico (estes já existem aos borbotões), mas a de tentar compreender (e se conseguir, transmitir aos leitores) as razões de um movimento que tinha tudo para dar errado, mas que miraculosamente deu certo.
Por enquanto presumo que isso se deveu ao fato da necessária mudança estar madura, maduríssima, sob risco até de apodrecer caso não fosse colhida, faltando, somente, um empurrãozinho, um leve safanão para acontecer. E este foi dado pelos ousados Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Victor Brecheret, Plínio Salgado, Anita Malfatti, Menotti Del Picchia, Guilherme de Almeida, Sérgio Milliet, Heitor Villa-Lobos, Tarsila do Amaral, Di Cavalcanti e outros tantos e tantos ousados e temerários precursores da modernidade nas artes do País.
Boa leitura.
O Editor.
O homem tem evoluído, a despeito de tantos e lamentáveis recuos, através dos séculos e dos milênios, em sua relativamente curta trajetória no Planeta. Graças à linguagem, notadamente a escrita, registra há uns quatro mil anos descobertas e idéias para as gerações que o sucederão, facilitando-lhes a tarefa de acrescentar, ao que receberam, o que também descobrirem, e de corrigir equívocos, além de sanar erros do que herdaram. Sem esse recurso, ouso afirmar que não existiriam ciência e nem artes, entre outras tantas atividades do espírito, dada a fragilidade da memória humana e a efemeridade desse estranhíssimo animal.
A invenção e o desenvolvimento da escrita foi a maior e mais decisiva mudança já ocorrida em todos os tempos, fulcro de todo o posterior progresso da espécie. Só não concorda com isso quem não tem raciocínio lógico, se é quer exista quem não admita essa importância. Se existir... tal sujeito é o alienado dos alienados. A vida dos povos é caracterizada por mudanças de toda a sorte e, reitero, nem sempre positivas.
É certo que algumas seria melhor que nunca tivessem ocorrido, porquanto significaram profundo retrocesso, até que fossem corrigidas por outras, de outras gerações e a humanidade voltasse a andar para a frente, recuperando pelo menos parte do tempo perdido. Passo a passo, o Homo Sapiens evoluiu e segue evoluindo, com todos seus erros e contradições, criando soluções para problemas antigos (e, não raro, também para algumas novas dificuldades, muitas bem maiores e mais complicadas do que as recém solucionadas, por isso não resolvidas). Todavia, muda, muda e muda. Mudar é preciso, até para adaptação humana a novas e imprevistas circunstâncias.
O que ocorre na vida, lógico, se repete nas artes, que é a forma como o homem a entende e a reproduz, posto que simbolicamente. Se aquela muda, esta também tem que mudar, para que possa ser adequadamente interpretada e representada. Temo não ter sido suficientemente claro nesta reflexão. Todavia, como ela está expressa por escrito, sempre haverá a possibilidade dos leitores a esclarecerem (nem que sejam os do próximo milênio, se a humanidade ainda existir e não se destruir, destruindo também toda a obra que já foi produzida).
Este fevereiro de 2012, mês de Carnaval (e não somente no Brasil, mas principalmente nele, onde essa manifestação popular adquire características peculiares, próprias, únicas), marca um momento de profunda mudança no País, notadamente na maneira de fazer e de entender as artes. O episódio ocorreu há já nove décadas, no início do século passado, o XX, que prometia ser o “das luzes” (que, de fato, foi), mas que acabou marcado, também (e principalmente) por extrema e absurda violência, representada por duas guerras mundiais que, somadas, redundaram na morte de mais de 50 milhões de pessoas, além de centenas, quiçá milhares, de conflitos regionais, que mataram número equivalente de indivíduos. Houve momentos em que tudo levava a crer que a humanidade se extinguiria, como espécie, e que tudo e todos viraríamos pó. O risco não somente existiu, mas foi iminente.
E qual foi essa mudança, ocorrida no Brasil, mais especificamente na cidade de São Paulo, então bucólico e sonolento burgo, muitíssimo diferente do seu atual perfil, de terceira maior metrópole do mundo? Foi, sem dúvida, o que se convencionou chamar de “Semana da Arte Moderna de 1922”, que teve por palco o elegante Teatro Municipal paulistano. Estou seguro que, tanto seus organizadores, quanto os que apoiaram esse ousado movimento de rebeldia (e os que se lhe opuseram, ferrenha e fervorosamente), não tinham a menor noção de que o tal evento iria adquirir a importância que adquiriu.
O ato (ou atos, porque foram vários) tinha tudo para dar errado. Por exemplo, a cidade escolhida para acontecer não era, na época, a mais adequada. Pelo menos teoricamente, melhor seria se ocorresse no Rio de Janeiro, então não somente capital do País, mas a urbe mais populosa, que polarizava a cultura e as artes nacionais. Recorde-se que na ocasião, não existiam os veículos de comunicação de que dispomos hoje. O rádio mal engatinhava. A televisão apenas chegaria 28 anos depois, com a inauguração da TV Tupi de São Paulo, em setembro de 1950. Internet? As pessoas sequer desconfiavam o que vinha a ser um computador. Nem estradas ligando a capital paulista ao Rio existiam, porquanto a Via Dutra não havia ainda nem mesmo sido cogitada.
O movimento passou para a história como a Semana de Arte Moderna, o que faz o leitor desavisado pensar que foram sete dias literais de manifestações. Não foram. Limitaram-se a apenas três dias, 13, 15 e 17 de fevereiro. A platéia, por seu turno, não foi das mais receptivas. Pelo contrário, caracterizou-se por desabrida e quase consensual hostilidade. Pior foram os ataques na imprensa, que não poupou críticas sumamente ácidas e epítetos dos mais desabonadores.
Um dos incidentes ocorridos no Teatro Municipal, que ilustra a caráter o ânimo do público, ocorreu em 15 de fevereiro, durante a leitura do poema “Os sapos”, de Manuel Bandeira. Em vez de ouvir, educada e civilizadamente, a declamação dessa magnífica peça literária, as pessoas presentes imitaram, em coro, o coaxar do tal batráquio, encobrindo a voz de quem lia, de sorte que a leitura não fosse ouvida por ninguém e, de fato, não foi.
Escandalizada, mesmo, a platéia ficou dois dias depois, com a apresentação musical do sempre irreverente (e genial) Heitor Villa-Lobos. O compositor do “Trenzinho caipira” entrou no palco com traje a rigor, como a ocasião requeria, mas calçando num pé um sapato e, no outro, um chinelo. O público não o poupou. Vaiou-o intensamente, xingou-o de vários nomes e alguns, mais afoitos, ameaçaram subir no palco para tirá-lo dali a força. As pessoas presentes consideraram a atitude do músico escrachada e desrespeitosa. As aparências, todavia, enganam (e como!). Tempos depois ficou-se sabendo que Villa-Lobos se apresentou daquela formas não com a intenção de chocar a quem quer que fosse, mas porque estava com um incomodíssimo calo no pé calçado com o chinelo.
Muito se falará, com certeza (e muito falarei, também) sobre a Semana de Arte Moderna de 1922, que só teve (reitero) três dias, ao longo deste 2012, embora minha intenção não seja a de fazer nenhum relato histórico (estes já existem aos borbotões), mas a de tentar compreender (e se conseguir, transmitir aos leitores) as razões de um movimento que tinha tudo para dar errado, mas que miraculosamente deu certo.
Por enquanto presumo que isso se deveu ao fato da necessária mudança estar madura, maduríssima, sob risco até de apodrecer caso não fosse colhida, faltando, somente, um empurrãozinho, um leve safanão para acontecer. E este foi dado pelos ousados Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Victor Brecheret, Plínio Salgado, Anita Malfatti, Menotti Del Picchia, Guilherme de Almeida, Sérgio Milliet, Heitor Villa-Lobos, Tarsila do Amaral, Di Cavalcanti e outros tantos e tantos ousados e temerários precursores da modernidade nas artes do País.
Boa leitura.
O Editor.
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Dessa lista presume-se que todos (ou a maioria) eram dotados de inteligência, talento e ousadia especiais. Deu no que deu.
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