História romanceada
O que chamamos de “realidade”, nem sempre é geral e muito menos consensual. E mais, ao ser descrita, o é na versão de quem a descreve, que pode ou não se “aproximar” da verdade. Mas nunca, nunca mesmo, a descrição é literal, rigorosamente como os fatos ocorreram. Quando se trata de acontecimentos recentes, a narrativa nem é tão complicada, ou pelo menos não tanto quanto a feita em relação, por exemplo, a uma ocorrência histórica, que o narrador não testemunhou (e nem poderia testemunhar) por ter se dado em época muito remota, bastante anterior ao seu nascimento, com suas circunstâncias peculiares e costumes mutantes. Estes mudam e, não raro, o que foi mudado sequer deixa vestígios.
Por isso, concordo com Fernando Pessoa, quando conclui: “Manufaturamos realidades”. E ninguém a “manufatura” melhor e com maior freqüência que o escritor. Há, inclusive, um “subgênero” de literatura, chamado, genericamente, de “romance histórico”, que mistura ingredientes de História (com “h” maiúsculo) e de pura ficção. Os enredos e personagens baseiam-se em fatos ocorridos, testemunhados, relatados e até documentados por historiadores e em protagonistas que de fato existiram, mas a narrativa é livre, diria, até, ficcional, com boa parte dela saída, exclusivamente, da imaginação do escritor.
Esse tipo de enredo é comuníssimo e também antiqüíssimo. Diria que metade dos romances que são ou que foram lançados ao longo do tempo segue essa linha. São ficção, mas baseados na “realidade” ou no que os escritores interpretam como tal. No Brasil, por exemplo, lembro de Paulo Setúbal, natural de Tatuí, que foi membro da Academia Brasileira de Letras. Quem já leu “A Marquesa de Santos”, “O Príncipe de Nassau” e “A bandeira de Fernão Dias”, entre tantos dos seus romances históricos, sabem a que estou me referindo. Poderia citar uma infinidade de outros, mas não o farei, até para não maçá-lo muito.
No exterior, então, a quantidade de escritores que lançaram mão desse recurso é imensa e, sem exagero, incontável. Citarei alguns, de memória (e por isso deixarei infinitas lacunas) a título de ilustração. Exemplo? Gustave Flaubert e seu clássico “Salambô”, nome fictício da filha do general cartaginês Amilcar Barca, célebre por sua atuação nas “Guerras Púnicas”. Querem outro? Cito, de cara, uma dupla, que produziu uma infinidade de livros nessa linha escritos a quatro mãos, Emile Erkmann e Alexandre Chatrian, entre os quais o clássico “Waterloo” e “O recruta de Napoleão”.
O magnífico romance “Guerra e paz”, de Leon Tolstoi, é do mesmo gênero, assim como “Doutor Jivago”, de Bóris Pasternak. Entre os mais recentes, cito “O punho de Deus”, de Frederick Forsyth, tendo por pano de fundo a Guerra do Golfo (a primeira delas para expulsar as tropas do Iraque do território do Kuwait ocupado) e o suposto plano de Saddam Hussein para fabricar uma bomba nuclear e um supercanhão para o seu lançamento, o que foi muito citado (e usado, inclusive, como pretexto pelo presidente norte-americano George Bush, o filho, para invadir o território iraquiano, ocupá-lo, depor seu ditador e levá-lo a seguir a julgamento, executando-o na forca na sequência), o que nunca foi comprovado.
Esta, ainda, é a forma preferida dos enredos do superbest-seller Dan Brown, notadamente de seu polêmico romance “O Código da Vinci” e, ademais, de vários outros dos seus livros. Como se vê, o tema é bastante vasto e não pode ser tratado numa única reflexão, como esta. Daí eu deixar implícito que voltarei, certamente, ao assunto, não para esgotá-lo, evidentemente, mas para expô-lo de forma mais compreensível e didática.
Sir Walter Scott escreveu diversos romances históricos, notadamente tendo por pano de fundo a chamada Idade Média. Há umas três décadas, a editora portuguesa Otto Pierre Editores lançou toda uma coleção do gênero, que tive a felicidade de adquirir e de “devorar” com apetite e até com gula. Alexandre Dumas, com seu “Os três mosqueteiros”, pode ser classificado nessa categoria, assim como Alexandre Herculano (“Eurico, o Presbítero”). Viram quantos nomes já citei, recorrendo, apenas, à memória? No entanto, não mencionei (sem nenhum exagero) nem um milionésimo das obras de escritores que se inspiraram na História para produzir obras primas, muitas tidas e havidas (com justiça) como clássicos da literatura mundial. Muitos não sabem, por exemplo, que o já saudoso e premiadíssimo escritor português José Saramago também escreveu nessa linha, por exemplo, seu pouco citado, mas excelente “Memorial de convento”.
Encerro estas reflexões com a menção ao filósofo húngaro Georg Lukács, que escreveu o seguinte, a propósito de romances históricos (citação que encontrei na enciclopédia eletrônica Wikipédia): “Este exige não só a colocação da diagese em épocas históricas remotas, como uma estratégia narrativa capaz de reconstruir com minúcia os componentes sociais, axiológicos, jurídicos e culturais que caracterizam essas épocas”. Essas exigências e dificuldades, certamente, só vêm ressaltar e valorizar o talento, se não a genialidade, de escritores que produziram obras marcantes e imortais se valendo desse tipo de enredo. São, pois, parodiando Fernando Pessoa, sem tirar e nem pôr, lídimos “manipuladores de realidades”.
Boa leitura.
O Editor.
O que chamamos de “realidade”, nem sempre é geral e muito menos consensual. E mais, ao ser descrita, o é na versão de quem a descreve, que pode ou não se “aproximar” da verdade. Mas nunca, nunca mesmo, a descrição é literal, rigorosamente como os fatos ocorreram. Quando se trata de acontecimentos recentes, a narrativa nem é tão complicada, ou pelo menos não tanto quanto a feita em relação, por exemplo, a uma ocorrência histórica, que o narrador não testemunhou (e nem poderia testemunhar) por ter se dado em época muito remota, bastante anterior ao seu nascimento, com suas circunstâncias peculiares e costumes mutantes. Estes mudam e, não raro, o que foi mudado sequer deixa vestígios.
Por isso, concordo com Fernando Pessoa, quando conclui: “Manufaturamos realidades”. E ninguém a “manufatura” melhor e com maior freqüência que o escritor. Há, inclusive, um “subgênero” de literatura, chamado, genericamente, de “romance histórico”, que mistura ingredientes de História (com “h” maiúsculo) e de pura ficção. Os enredos e personagens baseiam-se em fatos ocorridos, testemunhados, relatados e até documentados por historiadores e em protagonistas que de fato existiram, mas a narrativa é livre, diria, até, ficcional, com boa parte dela saída, exclusivamente, da imaginação do escritor.
Esse tipo de enredo é comuníssimo e também antiqüíssimo. Diria que metade dos romances que são ou que foram lançados ao longo do tempo segue essa linha. São ficção, mas baseados na “realidade” ou no que os escritores interpretam como tal. No Brasil, por exemplo, lembro de Paulo Setúbal, natural de Tatuí, que foi membro da Academia Brasileira de Letras. Quem já leu “A Marquesa de Santos”, “O Príncipe de Nassau” e “A bandeira de Fernão Dias”, entre tantos dos seus romances históricos, sabem a que estou me referindo. Poderia citar uma infinidade de outros, mas não o farei, até para não maçá-lo muito.
No exterior, então, a quantidade de escritores que lançaram mão desse recurso é imensa e, sem exagero, incontável. Citarei alguns, de memória (e por isso deixarei infinitas lacunas) a título de ilustração. Exemplo? Gustave Flaubert e seu clássico “Salambô”, nome fictício da filha do general cartaginês Amilcar Barca, célebre por sua atuação nas “Guerras Púnicas”. Querem outro? Cito, de cara, uma dupla, que produziu uma infinidade de livros nessa linha escritos a quatro mãos, Emile Erkmann e Alexandre Chatrian, entre os quais o clássico “Waterloo” e “O recruta de Napoleão”.
O magnífico romance “Guerra e paz”, de Leon Tolstoi, é do mesmo gênero, assim como “Doutor Jivago”, de Bóris Pasternak. Entre os mais recentes, cito “O punho de Deus”, de Frederick Forsyth, tendo por pano de fundo a Guerra do Golfo (a primeira delas para expulsar as tropas do Iraque do território do Kuwait ocupado) e o suposto plano de Saddam Hussein para fabricar uma bomba nuclear e um supercanhão para o seu lançamento, o que foi muito citado (e usado, inclusive, como pretexto pelo presidente norte-americano George Bush, o filho, para invadir o território iraquiano, ocupá-lo, depor seu ditador e levá-lo a seguir a julgamento, executando-o na forca na sequência), o que nunca foi comprovado.
Esta, ainda, é a forma preferida dos enredos do superbest-seller Dan Brown, notadamente de seu polêmico romance “O Código da Vinci” e, ademais, de vários outros dos seus livros. Como se vê, o tema é bastante vasto e não pode ser tratado numa única reflexão, como esta. Daí eu deixar implícito que voltarei, certamente, ao assunto, não para esgotá-lo, evidentemente, mas para expô-lo de forma mais compreensível e didática.
Sir Walter Scott escreveu diversos romances históricos, notadamente tendo por pano de fundo a chamada Idade Média. Há umas três décadas, a editora portuguesa Otto Pierre Editores lançou toda uma coleção do gênero, que tive a felicidade de adquirir e de “devorar” com apetite e até com gula. Alexandre Dumas, com seu “Os três mosqueteiros”, pode ser classificado nessa categoria, assim como Alexandre Herculano (“Eurico, o Presbítero”). Viram quantos nomes já citei, recorrendo, apenas, à memória? No entanto, não mencionei (sem nenhum exagero) nem um milionésimo das obras de escritores que se inspiraram na História para produzir obras primas, muitas tidas e havidas (com justiça) como clássicos da literatura mundial. Muitos não sabem, por exemplo, que o já saudoso e premiadíssimo escritor português José Saramago também escreveu nessa linha, por exemplo, seu pouco citado, mas excelente “Memorial de convento”.
Encerro estas reflexões com a menção ao filósofo húngaro Georg Lukács, que escreveu o seguinte, a propósito de romances históricos (citação que encontrei na enciclopédia eletrônica Wikipédia): “Este exige não só a colocação da diagese em épocas históricas remotas, como uma estratégia narrativa capaz de reconstruir com minúcia os componentes sociais, axiológicos, jurídicos e culturais que caracterizam essas épocas”. Essas exigências e dificuldades, certamente, só vêm ressaltar e valorizar o talento, se não a genialidade, de escritores que produziram obras marcantes e imortais se valendo desse tipo de enredo. São, pois, parodiando Fernando Pessoa, sem tirar e nem pôr, lídimos “manipuladores de realidades”.
Boa leitura.
O Editor.
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Uma prima, Simone Narciso Lessa, com pós-doutorado em História diz que todos os fatos históricos têm uma grande porção de imaginação. Fora a criação, é certo. Nem filmando podemos afirmar - já que a edição modifica tudo-, que estamos diante da realidade.
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