Carnaval em três dias
* Por Urariano Mota
No primeiro deles, era domingo de carnaval 1958 em Água Fria. Ali, em frente ao Cinema Império, no largo do bairro, passavam mulheres, meninos, homens, piratas, colombinas, vedetes, palhaços, toureiros, zorros, ursos, lança-perfumes, bisnagas, perfumes, promessas de corpos nus que não podíamos pegar. Havia um suor bom onde se colavam os confetes, umas peles abrasadas, uns sovacos mal raspados que eram em si mesmos fetiches do sexo feminino, esbarrando-se num fogo que desejava a tudo queimar, ardendo até a alma pobre da gente. Era uma explosão de braços e pernas no frevo, uma multidão revolta, uma humanidade negra, mulata, branca, revoltada, que se anunciava, e não sabíamos: atenção, menino, atenção, infância: “nós passaremos”. Acaso sabíamos que nem sombra de sêmen e amor restaria no corpo imperioso, flamante daquela mulher endemoninhada? Que suas coxas não seriam eternas, sabíamos? Ah, mas pressentíamos, e sem ciência aprendida, somente com o saber da urgência do nosso sangue, com a percepção transmitida de gente a gente, que corria a multidão, que vem de gerações desde que o homem se fez na terra, gritávamos:
“Felinto, Pedro Salgado,
Guilherme, Fenelon,
Cadê teus blocos famosos?
Bloco das Flores, Andaluzas,
Pirilampos, Apois-Fum,
Dos carnavais saudosos?
Na alta madrugada
O coro entoava
Do bloco a marcha-regresso
Que era o sucesso
Dos tempos ideais
Do velho Raul Morais:
‘Adeus, adeus, ó minha gente,
que já cantamos bastante..’
E Recife adormecia
Ficava a sonhar
Ao som da triste melodia....”
Então vinham os acordes, letais. Que em letras de fogo deveriam estar gravados. Ouçam http://www.youtube.com/watch?v=zQoO_001lww
No segundo dia, é segunda-feira de carnaval em 2005. Eu me recupero de uma cirurgia, que se não foi ruim, fora rim sem dúvida. Sentado espiono os blocos que passam na rua. O som dos metais, o chamamento à desordem é uma ordem lá fora. As fantasias e os mascarados passam como os navios e os trens passam, como o gozo proibido e negado passa. A música do frevo estoura em todo o ar e paisagem como uma perseguição. Assim sentado, sinto-me como o personagem de Hitchcock, o fotógrafo Jeff, de Janela Indiscreta.
A vida é irônica. No fim de 2004, eu havia dito à mulher e aos filhos, como todos os anos repito e reclamo: “O próximo carnaval eu não brinco. Chega! Quero distância desse barulho”, e a trincar os dentes acrescentara, como todos os anos: “eu não suporto mais tamanha agitação. Chega!”. Deus me ouviu. À sua maneira me ouviu: aqui estou, longe da folia, conforme o desejo inicial, mas sob estrita recomendação médica, incapaz absoluto de pular, de saltar, tão frágil quanto o homem de vidro, aquele em que se transformou O licenciado Vidraça, de Cervantes. “Este ano eu não brinco”, dissera, e os deuses me ouviram. Então ouço uma canção na rua, “neste carnaval, quá-quá-quá-quá, meu prazer é gargalhar”.
Ouvia isso e o paradoxo vinha: agora que não podia sair, brincar, pular, beber, beber até cair, agora que estava na paz do recolhimento, agora que ganhava o privilégio de ser evitado pelos alegres foliões, justamente agora sentia uma falta extraordinária de carnaval. No momento em que podia ficar em casa a ler e a ouvir música suave, ah, como desejava “Olinda, quero cantar”, como me acendia o desejo de estar na multidão, com os metais a gritar o mais alto frevo, ah, como desejava receber cotoveladas e empurrões à altura do rim, da cicatriz no ventre! Ah, como e quanto desejava mergulhar de cabeça no álcool, na cachaça, no sol quente, no azul luminoso, mergulhar até virar éter, lança-perfume, porque forte era a consciência do quanto breve e estúpida era, é a nossa existência.
Agora, hoje, no terceiro dia são vésperas do carnaval de 2012. A casa se enche de máscaras, coroas de pano de rei, coroa de latão de rainha. E mais licor de jenipapo, de caju e de laranja-cravo. Um filho chega do Rio, louco e ansioso por Olinda, a filha vai para um bloco de jovens na Cidade Alta. À minha revelia, a senhora esposa é toda preparação para os urgentes, alegres e felizes três próximos dias. Por mim, não, eu não brincava, sem dúvida. Por mim, eu me recolhia para altos estudos, leituras, silêncio e meditações. Mas como vou decepcioná-los? É coisa muito feia atrapalhar a felicidade dos outros. E depois, não sou mais, como antes, um convalescente sem câmera a imitar o fotógrafo de Janela Indiscreta. Chega. Por enquanto, a fantasia é outra.
* Escritor, jornalista, colaborador do Observatório da Imprensa, membro da redação de La Insignia, na Espanha. Publicou o romance “Os Corações Futuristas”, cuja paisagem é a ditadura Médici. Tem inédito “O Caso Dom Vital”, uma sátira ao ensino em colégios brasileiros.
* Por Urariano Mota
No primeiro deles, era domingo de carnaval 1958 em Água Fria. Ali, em frente ao Cinema Império, no largo do bairro, passavam mulheres, meninos, homens, piratas, colombinas, vedetes, palhaços, toureiros, zorros, ursos, lança-perfumes, bisnagas, perfumes, promessas de corpos nus que não podíamos pegar. Havia um suor bom onde se colavam os confetes, umas peles abrasadas, uns sovacos mal raspados que eram em si mesmos fetiches do sexo feminino, esbarrando-se num fogo que desejava a tudo queimar, ardendo até a alma pobre da gente. Era uma explosão de braços e pernas no frevo, uma multidão revolta, uma humanidade negra, mulata, branca, revoltada, que se anunciava, e não sabíamos: atenção, menino, atenção, infância: “nós passaremos”. Acaso sabíamos que nem sombra de sêmen e amor restaria no corpo imperioso, flamante daquela mulher endemoninhada? Que suas coxas não seriam eternas, sabíamos? Ah, mas pressentíamos, e sem ciência aprendida, somente com o saber da urgência do nosso sangue, com a percepção transmitida de gente a gente, que corria a multidão, que vem de gerações desde que o homem se fez na terra, gritávamos:
“Felinto, Pedro Salgado,
Guilherme, Fenelon,
Cadê teus blocos famosos?
Bloco das Flores, Andaluzas,
Pirilampos, Apois-Fum,
Dos carnavais saudosos?
Na alta madrugada
O coro entoava
Do bloco a marcha-regresso
Que era o sucesso
Dos tempos ideais
Do velho Raul Morais:
‘Adeus, adeus, ó minha gente,
que já cantamos bastante..’
E Recife adormecia
Ficava a sonhar
Ao som da triste melodia....”
Então vinham os acordes, letais. Que em letras de fogo deveriam estar gravados. Ouçam http://www.youtube.com/watch?v=zQoO_001lww
No segundo dia, é segunda-feira de carnaval em 2005. Eu me recupero de uma cirurgia, que se não foi ruim, fora rim sem dúvida. Sentado espiono os blocos que passam na rua. O som dos metais, o chamamento à desordem é uma ordem lá fora. As fantasias e os mascarados passam como os navios e os trens passam, como o gozo proibido e negado passa. A música do frevo estoura em todo o ar e paisagem como uma perseguição. Assim sentado, sinto-me como o personagem de Hitchcock, o fotógrafo Jeff, de Janela Indiscreta.
A vida é irônica. No fim de 2004, eu havia dito à mulher e aos filhos, como todos os anos repito e reclamo: “O próximo carnaval eu não brinco. Chega! Quero distância desse barulho”, e a trincar os dentes acrescentara, como todos os anos: “eu não suporto mais tamanha agitação. Chega!”. Deus me ouviu. À sua maneira me ouviu: aqui estou, longe da folia, conforme o desejo inicial, mas sob estrita recomendação médica, incapaz absoluto de pular, de saltar, tão frágil quanto o homem de vidro, aquele em que se transformou O licenciado Vidraça, de Cervantes. “Este ano eu não brinco”, dissera, e os deuses me ouviram. Então ouço uma canção na rua, “neste carnaval, quá-quá-quá-quá, meu prazer é gargalhar”.
Ouvia isso e o paradoxo vinha: agora que não podia sair, brincar, pular, beber, beber até cair, agora que estava na paz do recolhimento, agora que ganhava o privilégio de ser evitado pelos alegres foliões, justamente agora sentia uma falta extraordinária de carnaval. No momento em que podia ficar em casa a ler e a ouvir música suave, ah, como desejava “Olinda, quero cantar”, como me acendia o desejo de estar na multidão, com os metais a gritar o mais alto frevo, ah, como desejava receber cotoveladas e empurrões à altura do rim, da cicatriz no ventre! Ah, como e quanto desejava mergulhar de cabeça no álcool, na cachaça, no sol quente, no azul luminoso, mergulhar até virar éter, lança-perfume, porque forte era a consciência do quanto breve e estúpida era, é a nossa existência.
Agora, hoje, no terceiro dia são vésperas do carnaval de 2012. A casa se enche de máscaras, coroas de pano de rei, coroa de latão de rainha. E mais licor de jenipapo, de caju e de laranja-cravo. Um filho chega do Rio, louco e ansioso por Olinda, a filha vai para um bloco de jovens na Cidade Alta. À minha revelia, a senhora esposa é toda preparação para os urgentes, alegres e felizes três próximos dias. Por mim, não, eu não brincava, sem dúvida. Por mim, eu me recolhia para altos estudos, leituras, silêncio e meditações. Mas como vou decepcioná-los? É coisa muito feia atrapalhar a felicidade dos outros. E depois, não sou mais, como antes, um convalescente sem câmera a imitar o fotógrafo de Janela Indiscreta. Chega. Por enquanto, a fantasia é outra.
* Escritor, jornalista, colaborador do Observatório da Imprensa, membro da redação de La Insignia, na Espanha. Publicou o romance “Os Corações Futuristas”, cuja paisagem é a ditadura Médici. Tem inédito “O Caso Dom Vital”, uma sátira ao ensino em colégios brasileiros.
Achei que foi o texto em que mais nos deixou aproximar de você. Noutros foi possível um vislumbre, um espiar rápido, pela gretas. E era uma personagem, não uma pessoa. Agora é você, de fato, que além de gente, tem até rim.
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