domingo, 12 de fevereiro de 2012







Veludo e mescalina

* Por Laís de Castro

O sol ia batendo naquele mar e tudo parecia prata derretida, escorrendo pela areia afora, uma fúria convulsiva, um incitamento ao pecado, um queimar de olhos, de pés, argentum argentina prateada sugando para o fundo. Ia boiando, boiando naquele fim de tarde que resistia a acabar, o mistério da natureza que se constrói em nova escultura de sombras a cada momento. Nada que não pudesse ser revisitado amanhã e depois de amanhã ou três dias depois, impossível sair dali sou um imã e ela me agarra, me atrai, me amarra, a vida na areia me chama, não logro dar as costas para este espetáculo, logrado no que me resta do comando de minha vontade.

O violão parecia tocar sozinho, era tão fácil, tão simples, alguém já disse que o segredo é fazer parecer fácil e tudo vai ficando leve como a pluma ao vento da ópera mais famosa do mundo, os sons viajam na velocidade que merecem e nem se sabe exatamente aonde vão chegar. Os pequenos e grandes acordes embalam a especulação do mercado fonográfico, do leite escorrendo dos seios maternos, dos ventres molhados e secos, da história do mundo em pesado chumbo e em versos. Não é verdade que tudo começa e termina num acorde de lá, ainda existem os de sol. O sol vem e vai, escondendo atrás das nuvens que também são de prata, o corpo bóia solto sobre as águas salinas bem depois da arrebentação. Melhor, bóia sobre esse mar de prata derretida, quente como o último homem que morreu de febre amarela na floresta amazônica.

Não esqueça que eu te amo, não esqueça que eu te amo, não esqueça que eu te amo.

O sol entra em alguma gruta distante, o mar vira breu, preciso voltar para a praia porque tem show, vou soltar meus acordes como pássaros, libertos, vento em popa, preciso pagar o hotel, minha mulher chegou e disse que me ama. O mar escuro não deixa mais ver a praia de areia rosada que este México de tantos santos e santas proporciona e se alguém visse, veria o desespero que tomou conta do grupo, a mescalina parou de mitigar a dor do peito aberto em chamas por onde ainda passa queimando a prata derretida do fim da tarde. O silêncio é vencido pelo som da lágrima que escorre pelo rosto como se a pele fosse lixa, raspando sem economia no alarde do próprio pingar. É só o que se ouve. Mil pingares. Bis. Bis. Bis. Uma ovação para o magnífico solo de violão e o envolver de todos, em profundo silêncio, veludo vermelho forrando as poltronas eu sabia que um dia chegava aqui, toda essa gente veio só para me ver e ouvir, um silêncio reverente. O corpo vai para onde o mar leva, há estrelas de prata refletidas na água agora glacial, grogue e grolado, o olhar busca o sonho da saga. Não esqueça que eu te amo. Os reflexos vão perdendo a luz, esmaecida e fria como aço de punhal seco, a cor procura a senda da terra, os caminhos marítimos não permitem mais nenhuma alegria e apenas cansaço. Toda essa gente veio aqui só para me ver, um silenciar assustado, olhos esbugalhados, pavor redundante, vermelho quase veludo no sangue que escorre como escorreriam os acordes viajando para longe em sua velocidade sonora. Mescalina pelo amor de todos os céus. Não há lamento, nem drama. Viva o homem como um ser da natureza e morra o solo em ré, haja réus nessa incerteza. O violão agora é inútil.

* Jornalista no grupo Abril (3 prêmios Abril). Trabalhou, ainda, 8 anos na Editora Três (sob Luís Carta), 11 na Editora Símbolo onde foi diretora da Corpo a Corpo, da Vida Executiva e, agora, é da Dieta Já. É autora do livro “Um velho almirante e outros contos”, pela Editora Siciliano.

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