Uivos
* Por Urda Alice Klueger
Para
Luis Angel Ramil e para aquele cachorro
Foi
em 1955? Começo de 1956? (5 de novembro de 1956) Não sei, só sei
que era muito pequenina, e que depois meu pai me levou lá me
segurando pela mão, para ver aquele monte de destroços empretecidos
pelo fogo, como num exorcismo, mas já era tarde. Já tomara conta de
mim aquele uivo que já não sairia da minha alma e que me marcaria
indelevelmente e faria com que eu nunca esquecesse, desde aquele
tempo, o nome dela: Rua
Capitão Euclides de Castro.
A
já longa vida foi passando e muitas outras coisas foram acontecendo
naquela rua: houve um tempo que levava sapatos para um sapateiro,
ali, que se chamava Gramkow,
se não me engano – era um polaco, com certeza. Houve um tempo em
que entrava numa loja chamada Casa
das Noivas para
comprar flores de tecido, lá na década de 1980, para com elas
prender os cabelos – quantas fotos tenho dessa época, quando
transitava por uma juventude partida, capenga, que só tinha nexo
porque eu escrevia…
Também
há que se lembrar que ali ficava a velha Casa Brueckheimer,
onde se podia comprar quase que de tudo, e também a nova loja
de Móveis
Ideal,
com móveis tão lindos, tão preciosos, que faziam com se ficasse
sonhando com eles. Era a nova Loja de Móveis Ideal porque um dia
houvera a velha, a do incêndio e do uivo e não era possível
esquecer.
Agora
fizeram lá uma rua muito charmosa, sem trânsito de veículos, cheia
de conforto e de coisas bonitas para a gente da cidade, onde se pode
passar a tarde sentada num banco confortável, saboreando um bom
livro, como esse, de Gregorye
Haegretel,
que estou a ler, mas o uivo continua ali. Noutro dia tentei levantar
dados daquele incêndio numa página da Internet que cuida do passado
de Blumenau e
onde há mais de 26 mil Casaparticipantes, e descobri que quase
ninguém mais se lembra dele, quiçá do uivo. Fiquei achando que eu
era a última pessoa, ainda, a lembrar, e então entendi que deveria
escrever sobre ele.
Pois
um dia, lá na minha primeira infância, a velha Móveis Ideal (penso
que também era fábrica)
queimou inteiramente, ali, e as pessoas comentaram os detalhes e eu
ouvi, inclusive os uivos daquele cachorro que estava amarrado lá
dentro e que queimou com ela, sem ninguém poder entrar para
salvá-lo. O cachorro viu sua morte chegando inapelavelmente, e uivou
o quanto pode para tentar escapar do maior horror da sua vida,
inutilmente.
Eu
tinha três ou quatro anos, apenas, mas os uivos daquele cachorro
desconhecido entraram na minha pequena alma de então e ficaram por
toda a vida. Nunca mais pude ir à Rua Capitão Euclides de Castro
sem ouvi-los. Estão lá, ainda, mesmo agora que há aquela rua
bonita onde se pode passear como se nunca houvesse acontecido uma
tragédia ali. Passo por lá e os ouço, e como são fortes dentro de
mim…
*
Escritora de Blumenau/SC, historiadora e doutoranda em Geografia pela
UFPR, autora de vinte e seis livros (o 26º lançado em 5 de maio de
2016), entre os quais os romances “Verde Vale” (dez edições) e
“No tempo das tangerinas” (12 edições).
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