quinta-feira, 22 de junho de 2017

Alberto e Ayrton


* Por Marcelo Sguassábia


- Santos Dumont! O senhor é o Santos Dumont, né?
- Em carne e osso. Quer dizer, sem carne e sem osso. Você quem é?
- Senna. O Ayrton, sabe?
- Sena? O rio da minha lindíssima Paris?
- Não, não. O rei de Mônaco. Béco, para os íntimos. O piloto, tricampeão da Fórmula 1. O namorado da Adriane Galisteu...
- Agora, puxando pela memória, acho que já ouvi falar de você, sim. Faz pouco tempo que desencarnou, não é?
- Vinte e três anos... o senhor chama isso pouco tempo?
- Ah, foi outro dia mesmo. Pra quem já está aqui desde 1932, você nem gelou a carcaça, meu rapaz. Lembro da minha hora como se fosse hoje. Estava no Guarujá, chateado com o que andavam fazendo com a minha invenção, e  resolvi que não queria mais ficar lá embaixo. Aliás, sempre me senti mais à vontade aqui em cima.

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- Pois é. Se naquele dia fatídico já existisse um cockpit feito com material de caixa preta, talvez eu estivesse salvo. Difícil me acostumar com a ideia, vim pra cá cedo demais.
- Deixa de se lamentar, isso só piora as coisas. Mas me diz, como é que me reconheceu por essas bandas?
- O chapéu, o terno, o bigode... como não poderia deixar de ser, é claro que o senhor é nome de aeroporto no Brasil. Um dos maiores que temos por lá. 
- E você deve ser nome de rodovia.
- Sim. Mas o senhor é mais herói que eu, e é nome de estrada também. Duas, por sinal. Além de escolas, ruas, praças. Tem até uma cidade chamada Santos Dumont. 
- É, onde eu nasci. Chamava-se Palmyra, depois rebatizaram pra me homenagear. Fiquei sabendo por alguns irmãos espirituais. 
- Então. Cidade com o meu nome, por enquanto, não tem nenhuma. 
- Meu caro Ayrton, não é só você que guarda mágoa desse país ingrato. Outro dia mesmo estavam jogando truco por aqui o Duque de Caxias, o Dom Pedro I e o Tiradentes, amaldiçoando as últimas gatunagens de Brasília. Diziam que se soubessem que ia dar no que deu, não teriam movido uma palha.

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- Sabe de uma coisa, meu jovem? Me dá nos nervos ficar a eternidade toda vendo esses anjos, com essas caras gordas e barrocas, batendo asinha pra lá e pra cá, sem rota de voo definida. A coisa aqui ainda está nesse tempo, de asinha nas costas. Até mesmo o avião, se você for ver, já é algo bem ultrapassado. Inventei essa traquitana em 1906. Tudo bem que o 14-bis era feito de seda e bambu e que a tecnologia aeronáutica evoluiu muito daí pra frente, mas é arcaico demais como meio de locomoção. Não sei se sabia, mas eu, o Einstein e o Steve Jobs estamos concluindo um protótipo de transporte na velocidade da luz.

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- A Asa Norte e a Asa Sul. Tudo pelos ares, num ataque-surpresa. Que me diz, Ayrton?
- A sua raiva de asa é grande mesmo, Seu Alberto. 
- Temos que destruir tudo, pra não correr o risco de sobrar algum corrupto vivo. Sabemos que nessa operação-limpeza vamos matar um monte de pessoas inocentes, mas os bons viriam para o céu de qualquer jeito. E vão dar graças ao Pai por se livrarem daquele inferno.
- Isso, com certeza.
- Pra dar tudo certo, vamos precisar de um piloto experiente e habilidoso. É aí que você pode ajudar. Afinal, velocidade é o seu negócio. Ainda que a velocidade, no caso, seja a da luz. 
- Nossa, deve ser demais essa sensação. E eu achando, lá embaixo, que 350 por hora era o máximo da adrenalina.
- E então, podemos contar contigo?
- Deixa eu amadurecer a ideia, a gente vai se falando. Me dá seu chapéu de lembrança do nosso encontro?
- Só se você me der seu capacete. 


* Marcelo Sguassábia é redator publicitário. Blogs: WWW.consoantesreticentes.blogspot.com (Crônicas e Contos) e WWW.letraeme.blogspot.com (portfólio).



Um comentário:

  1. Ah, que delícia de diálogo! Jamais eu teria imaginado isso daí: criação e originalidade na justa medida do riso.

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