As
diferenças culturais na visão de um
refugiado sírio no Brasil
* Por
José Paulo Lanyi
Abdulbaset Jarour,
sírio de 25 anos, foi conhecer uma balada na boêmia rua Augusta, na região
central de São Paulo. Adorou o espaço, mas, desprevenido, ficou chocado ao ver
uma moça beijar dois rapazes em questão de minutos.
E queixou-se,
escandalizado, ao amigo e professor Silvio Cavalcante, que o havia levado ao
local.
O jovem, que vive no
Brasil desde fevereiro do ano passado, é um dos milhares de refugiados da
violenta guerra civil em curso na Síria, origem de uma crise migratória sem
precedentes na Europa.
Ex-combatente, Abdo,
como também é chamado, foi ferido em um bombardeio que deixou sequelas em uma
perna. Perdeu casa, trabalho, parentes e teve mais de cem amigos mortos no
conflito.
Viu sua família ser
separada e, de longe, mantém contato com a irmã, Gharam, que recentemente
embarcou com os três filhos, com idades entre 9 e 14 anos, na perigosa
travessia pelo mar Mediterrâneo da Turquia para a Europa.
Enquanto isso, o sírio
procura se adaptar, com bom humor, ao cotidiano da maior cidade do país. A BBC
Brasil conversou com Abdo e seus amigos brasileiros sobre as principais
dificuldades que ele tem enfrentado.
Brasil não fala inglês
Ao obter refúgio no
Brasil, o sírio pensou que encontraria uma cidade com natureza exuberante,
transporte a cavalo e economia movida pela pesca e pelo futebol de Ronaldo,
Roberto Carlos e Rivaldo, craques que admirava. E, por causa dos Estados Unidos
da América, imaginava que o inglês seria a língua principal.
Deparou-se, em vez
disso, com uma São Paulo de inúmeros prédios e carros e com poucos sinais de
pessoas jogando futebol nas ruas. E falando português, o que logo se impôs como
um grande desafio.
Quando seu dinheiro
acabou, Abdo passou a consertar celulares na loja de um libanês na avenida
Paulista – na Síria, o jovem era dono de um estabelecimento semelhante.
Tudo melhorou após ele
conhecer Cavalcante em um supermercado e ser apresentado por ele à professora
Valdívia Oliveira. Com salário atrasado e sem ter como pagar o aluguel em Santo
Amaro, na zona sul paulistana, foi acolhido na casa dela, no extremo leste da
cidade.
Desde então, seu
português deslanchou. "Ele fala até 'inconstitucionalissimamente'",
elogia o amigo professor. Na conversa com a BBC Brasil, acertou
"paralelepípedo" de primeira.
Abismo cultural
"Apesar de a
maioria das pessoas pensar que a grande dificuldade em lidar com refugiados é a
língua, percebo que as barreiras culturais são tão complicadas quanto a
linguagem", diz Valdívia sobre a convivência com o jovem sírio.
"No domingo ele
me perguntou: 'Você faz um favor para mim'? Quando respondi 'depende', ele
ficou muito chateado", conta ela. A explicação: "Como eu moro aqui,
ela é muito minha amiga e cuida de mim, não pode falar 'depende'. Tem que fazer
o que eu peço", explica Abdo.
As barreiras culturais
citadas pela professora, e confirmadas pelo próprio rapaz, se revelam
diariamente, mesmo nas atividades mais comuns. Ele não gostou muito, por
exemplo, do que viu ao ser levado para assistir a um monólogo teatral.
"No meu país
também tem", disse a Cavalcante, antes de apontar para o palco,
contrariado. "Mas com muito mais gente em cima daquele negócio."
Até as experiências
aprovadas pelo sírio trazem surpresas. Um dia, ele se entregou, feliz, à
euforia de uma multidão nas ruas. Para seu espanto, porém, descobriu depois
que, em vez de uma festa popular, participara de uma manifestação contra a
presidente Dilma Rousseff.
Curioso, quis saber de
Valdívia por que os policiais só haviam observado aquele ato político.
"Ele achou interessante porque na Síria os protestos (contra o governo)
são reprimidos com violência", conta a amiga.
Apuros
Abdo também quase
entrou em apuros algumas vezes.
Na estação de metrô
Artur Alvim, na zona leste, Abdo certa vez utilizou seus conhecimentos
militares para imobilizar um rapaz que acabara de roubar a bolsa de uma mulher.
Minutos depois, porém,
viu o mesmo criminoso entrar pela porta de trás do ônibus que pegou.
"Achei que ele ia me matar. Olhei feio para o ladrão, que só balançou a
cabeça para os lados e desceu alguns pontos depois", lembra.
Outro dia, reclamou
com o motorista ao ver uma moça sentada no chão do ônibus enquanto um homem
ocupava um banco: "Diga para ele se levantar para ela sentar". Levou
uma bronca do condutor: "Fica quieto para esse rapaz não brigar com
você".
Na mesa de cabeceira
do jovem, que é sunita, estão a Bíblia e o Alcorão. Ele diz estranhar costumes
brasileiros: "No metrô, no teatro, no shopping, os casais se beijam e
parece que o homem vai comer a cabeça da mulher", diz. "É um problema
para mim. Aqui é outra cultura, outra cabeça, outro olhar, outro tudo."
A gastronomia pode
trazer algumas complicações. Ele chegou a sair de casa para trocar uma pizza de
frango que havia vindo com um pedaço minúsculo de linguiça.
O rapaz não come carne de porco, não só por ser muçulmano. "Na Síria, pouca gente come. Sempre nos ensinaram que faz nascer um bichão grande que vai até a cabeça."
Drama
Embora leve tudo no
bom humor, não faltam problemas para o jovem sírio. Desempregado, ele sente
muitas dores no joelho afetado pelo bombardeio em Damasco e espera por uma
consulta para marcar uma cirurgia no SUS. Sofre ainda de uma hepatite causada
pelo excesso de remédios, doença que exige dieta e repouso.
Ele também acompanha à
distância a saga de sua irmã, que antes de fazer a travessia à Europa estava
sem dinheiro para pagar o aluguel e ameaçada de ir parar nas ruas de Istambul.
Gharam chegou a ser presa, mas foi liberada pela polícia turca.
No final, um alívio.
Com a ajuda de outros refugiados sírios, ela e os filhos conseguiram embarcar
para a Grécia e depois atravessaram Croácia, Eslovênia e chegaram à Áustria,
onde hoje estão temporariamente abrigados na casa de uma canadense.
(Texto reproduzido do
site da BBC Brasil – WWW.bbc.com, publicado em
10.11.2015).
(*) José
Paulo Lanyi é jornalista, escritor e dramaturgo, autor do romance
"Calixto-Azar de Quem Votou em Mim", do romance cênico (gênero que
criou) "Deus me Disse que não Existe", da peça "Quando Dorme o
Vilarejo" (Prêmio Vladimir Herzog) e das coletâneas “Teatro de José Paulo
Lanyi e Outros Loucos” e “Balbúrdia literária”, todos da editora O Artífice.
Trabalha com o músico paulistano Flávio Villar Fernandes, com quem compôs a
trilha “Invernada” e a sinfonia “Atlântica” e na BBC Brasil.
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