sábado, 1 de agosto de 2015

Sagrado profano


* Por Laís de Castro


Não, eu não vou dizer que é normal. É estranho mesmo, é esdrúxulo, é tudo quanto você quiser dizer que é. Uma menina mongolóide, como se dizia antigamente, os olhos puxados, o sorriso mole, o corpo gordo e descoordenado, dançando, frouxa, no meio daquele montão de veados naquela discoteca gay. Uma noite atrás da outra, sem descanso, a mãe sentada numa cadeira dura, olhando, observando, consciente de que a única alegria da menina é aquele momento de dança, onde os rapazes todos olham para ela, lhe dão a mão, brincam e sorriem (mós sabemos que nenhum rapaz olha para uma menina assim, caruncho).

É esquisito mesmo, mas eu posso contar como começou e como acabou esta história que teve começo, meio e fim. Bem ao contrário dos filmes americanos e das novelas brasileiras, essa parece que não teve um final de soltar foguetes. Eu gosto de histórias de verdade que não têm melaço, não têm rapadura, não têm glicose, sacarose e os cambose, e nem favos de mel. Não são açucaradas, quero dizer, não têm aquela amolação de brincar de casinha, de amor sem fim que não duram e que qualquer dor de dente pode acabar com uma paixão destas em dez minutos, um tendo que abrir mão da praia para levar a outra ao dentista e ficando furibundo de raiva que fora está o maior sol.

Vou contar, então desde o começo.

A menina, que nasceu com Síndrome de Down, veja como a denominação do mal está politicamente correta, morava ao lado de uma discoteca gay que tinha shows metidos a hollywoodianos, com direito a escadaria e transformistas equilibrados em altíssimas sandálias plataforma, roupa de Carmen Miranda, dublando a Maddona. Maddona não, naquele tempo ela nem existia, a dublagem era da Lisa Minelli mesmo, New York, New York, que veado adora dublar mulher. Bem que eles poderiam dublar o Frank Sinatra em New York, New York, mas o que? Nem pensar! Acho que também tinha dublagem da Barbra Streisand e de outras cantoras, mas confesso que sou muito ruim com músicas americanas, tudo que eu ouço acho igual, com exceção daquelas maravilhas de New Orleans.

Estive naquela discoteca uma meia dúzia de vezes e, assim, conheci a menina a quem vou chamar Maria porque não lembro o nome dela, que dançava, dançava e dançava a noite inteira sem descanso. Girava o corpo desengonçado e olhava as luzes e sorria, aquele sorriso inexpressivo (nós sabemos que é assim, caruncho) com a alegria dos inocentes.

Na primeira vez que passou na porta da discoteca, Maria parou e ficou vidrada, olhando para dentro, ansiosa, balançando para  frente e para trás, no ritmo, como nunca antes. A mãe, que vamos chamar D. Sonia, tomara que o nome não coincida com o verdadeiromuito esquecido, com um sorriso de acabar com festa de reveillon em navio de tão triste, tomou um susto. Aquela menina que vivia há 20 anos prostrada, olhos baixos, desolada, apática, jogada feito uma boneca dorminhoca, parecia, ali naquela porta, acordar de um longo sono. Assim, mesmo tendo uma bolsa de parcos recursos, resolveu pagar o ingresso para as duas. Pequena, tímida e simples, aquela mater-dolorosa, que nunca tinha visto um veado de perto e agora estava no meio de mais de 200, era o susto personificado, parecia uma estátua de bronze enquanto a filha, pela primeira vez na vida, exibia um brilho nos olhos e quase ria, enquanto ia para pista de dança e começava, sozinha, a dançar.

Entre o pavor e a cerimônia, entre a alegria de ver a filha sorrir e dançar e o pejo que sentia em estar ali, Dona Sonia foi se chegando devagar, como quem não quer chegar (nós sabemos como isso funciona, caruncho) e escolheu, para encostar o corpo hirto, uma cadeira num cantinho sob o palco, de onde podia vigiar a menina e, ao mesmo tempo, esconder-se para encarar a encalistração e o retraimento que a faziam suar dos pés à cabeça. Tonta, o ouvido zunindo de medo, o que eu estou fazendo aqui, pensava, apavorada, meu marido vai me matar, que coisa mais louca esses homens que conversam com outros homens, encafifava, são veados, mas são tão bonitos. Ali, escondida, ela derramava  lágrimas sofridas e afortunadas, lágrimas de mãe, ao ver a filha, que durante duas décadas havia caminhado inerte diante da vida, sorrindo e girando, feliz como um pássaro que se solta da gaiola e voa, ainda que baixo, mas voa.

Assim se passou a primeira noite. Dona Sonia não conseguiu tirar Maria da pista até que a música terminasse, as luzes se apagassem e tudo ficasse, de novo, triste como túmulo de criança. Exausta, ela contou tudo ao marido que surpreendentemente entendeu e não fez nenhuma referência ao fato daquilo ser uma boite, ainda mais uma boite gay e, ainda mais misteriosamente, parecia também feliz com o que havia acontecido. Se a menina gostou você pode levar ela uma duas vezes por semana que mais que isso a gente não pode gastar, mas se ela fica feliz lá dentro... Aquela filha única era o doloroso xodó de ambos, era sua amargura, sua dor, sua cruz, pesada como chumbo que curva os ombros e destrói a vontade de viver, enfim.

Os homens e algumas mulheres, bem vestidos, bem postos na vida, que agitavam os corpos malhados naquela pista de danças, de início, fingiam não ver o que estava acontecendo, como se a menina fosse de vidro. Depois, foram se acostumando e não viam mesmo. Ela era mais um fato daquele contexto e assim foi aceita, com uma indefectível paciência no início e depois com um acachapante querer-bem. Sem querer ser piegas, que eu já disse lá atrás, tenho ódio de frase de novela, todos se apaixonaram por aquela presença comovente e real, se um dia ela faltava porque tinha um gripe ou porque a mãe estivesse com gripe, parecia que havia uma lacuna ali, no lugar da menina ficava pairando no ar uma espécie de apreensão...

Não vou ficar entrando em detalhes porque esses detalhes só machucam o coração dos mais sensíveis, a mãe chorando porque tinha descoberto um motivo de alegria para a filha, o pai juntando os trocados na carteira, para elas voltarem à boite, Maria pulando de felicidade e correndo para debaixo das luzes negras e coloridas, para aquela arena simples e pura, que os ascetas e falsos moralistas chamariam de antro de perdição, nós sabemos, caruncho, que não é bem isso. Aquele lugar não era uma furna de pecado, não. Há trinta anos atrás, aquilo era quase que um convento... Não, não é isso. Nem tudo de antigamente é melhor do que hoje, não. Mas eu posso garantir, porque fui testemunha ocular, que as pessoas iam lá para se divertir, conhecer-se e assistir aos shows. Era um lugar de lazer, sem perversão, nem dó, nem drama.

Pois bem, para encurtar essa conversa que já vai longa, eu vou dizer que essa menina nunca mais deixou de dançar, todas as noites, eu disse todas as noites e a mãe, insone, nunca mais dormiu, ficava ali sentada na cadeira dura, esperando o sol. No entanto, o que aconteceu (e aqui entra o sobrenatural, o belo, e eu que não sou dada a estas bobagens, nesse caso devo me render aos efeitos não racionais da bondade humana) foi que depois de algumas semanas, a menina já não dançava sozinha. Todos os rapazes e senhores que ali dançavam e, vou repetir, algumas mulheres também, passavam por Maria, davam um beijo, pegavam sua mão e giravam, brincavam com ela, alegravam ainda mais seu olhar com um gesto de carinho, um abraço, um toque cuidadoso.

Dona Sonia arrumou ali 200 amigos. A dona da discoteca, sabendo de suas dificuldades, nunca mais cobrou a sua entrada e nem a da filha, que tinham lugar de honra como se vips fossem e eram, já que o tinham conquistado o bem querer universal dos freqüentadores. E eu posso falar de cátedra, gays são exigentes como compradores de relógios suíços, carros alemães ou vinhos franceses. Ali, haviam deixado sua alma derreter de compaixão, como sorvete no forno.

Vou contar outra coisa, um dia Dona Sonia teve uma gripe e três convivas assíduos da boite foram buscar Maria para que  ela não perdesse a noite de dança. Depois, levaram a menina para casa, como se irmã deles fosse, protegida, serena, exausta, sonolenta. Senhores, eu vi.

Poucas vezes estive naquela discoteca, porque nunca fui dada a excesso de decibéis, mas tive grandes amigos que eram fanáticos pelo lugar. Depois, contudo, do que vi e do que soube que acontecia ali, passei a considerá-la um local sagrado (nós sabemos como é, caruncho).

Todas as noites, naquele altar, Maria e Dona Sonia tinham seus momentos de bem-aventurança: a menina, que na rua e na escola ninguém, praticamente, enxergava, e não venham me dizer que as pessoas dão mais do que 30 segundos de atenção para meninas como ela, agora era objeto das delicadezas e dos afagos generosos de todos ali presentes. Antes praticamente negligenciada por estranhos feito um cão sarnento, agora era amada, querida e alvo de carinho oi gatinha chegou tarde hoje, dizia um, oi Maria, tá tudo bem, oi garota, que roupa bonita, tá de blusa nova, cortou o cabelo ficou linda... Feliz, na sua inconsciência, ela agradecia com seu dançar desajeitado e seu sorriso pastoso e flácido. Muito aqui entre nós: ela não sabia que todos aqueles homens não tinham, exatamente, predileção por mulheres. Portanto, sentia-se cortejada. Dona Sonia, vendo a filha contente e bem tratada, todas as noites deixava escapar algumas lágrimas, agora só de alegria. Ela, sim, sabia que ali a menina não corria nenhum risco.

Alguns anos depois do começo dessa narrativa, no aniversário de um grande amigo, que freqüentava a discoteca, boa noite, boa noite, parabéns a você nesta data querida, tive uma surpreendente emoção: convidadas de honra, tratadas com amor e respeito, lá estavam Maria e Dona Sonia. Lembra delas, claro, lembro, prazer em revê-las, disse correndo, depressa, bobona, comovida, me tranquei no banheiro e chorei cântaros. Somos convidadas para aniversários toda semana, me contaria depois a mãe, orgulhosa, apaixonada pelos novos amigos, eu já faço até os bolos das festas para ganhar um pouco mais. Maria não falava. Apenas, o rosto lavado de satisfação, a alegria exposta sem pudores (nós sabemos, caruncho), comia brigadeiros, como uma criança de 8 anos. A esta altura já tinha uns 28 para 30 anos.

Não posso dizer quanto tempo durou essa fortuna, que não há mal que sempre dure e nem bem que nunca se acabe. Eu me afastei e, anos depois, passei em frente do que era antes aquela boite gay: em seu lugar, havia uma igreja. Por onde andarão Maria e Dona Sonia, se é que a mãe está viva, dizem que o maior medo de mães assim é o de morrer antes das filhas, que ficam abandonadas, lembrei, naquela tarde escura. Em que discoteca dançará, hoje, a eterna menina que agora deve ser uma senhora na faixa dos cinqüenta? Por onde andarão aqueles que aprenderam a amá-las com generosidade e respeito? Meu amigo, aquele do aniversário, está morto, não pode mais me dar notícias das duas.

Não quero ditar regras e nem sair por aí fazendo discursos pálidos como freiras assustadas e inúteis como reis e rainhas, mas não sei se agora, acolhendo uma casa de orações, aquele espaço seria mais divino do que a discoteca havia sido. Não sei se as pessoas que para ali se encaminham hoje, mesmo lendo textos ditos religiosos, levem consigo a leveza de alma dos que iam lá antes, dançar e tomar cerveja. Tão generosos que receberam Maria e sua mãe de corações, mentes e braços abertos e abriram, da mesma forma, suas casas para as duas. Tão doces que embalavam Maria, com a nobreza de sua atenção e carinho fraterno. Tão magnânimos que, a mil quilômetros de qualquer preconceito, amaram aquela menina como a si mesmos.

Não apostaria que os homens e as poucas mulheres que freqüentavam aquela arena de luzes e música, fossem menos sagrados do que os que vieram depois, com a suposta igreja. Nós sabemos, caruncho.

* Jornalista, atua no grupo Abril (3 prêmios Abril). Trabalhou, ainda,  8 anos na Editora Três (sob Luís Carta), 11 na Editora Símbolo onde foi diretora da Corpo a Corpo, da Vida Executiva e, agora, é da Dieta Já. É autora do livro “Um velho almirante e outros contos”, pela Editora Siciliano, entre outros tantos.

Nenhum comentário:

Postar um comentário