sexta-feira, 2 de janeiro de 2015

Rito


* Por Assionara Souza


1.

Gosto de comer você de manhã, depois de ter sonhado com manadas de elefantes caminhando lentamente de forma meditativa numa paisagem africana. Gosto de comer você de manhã, depois de ter sonhado qualquer coisa e nem lembrar. Gosto de comer você de manhã sem sequer dar bom dia; seu corpo com a febre da noite, ileso de alguma morte. Gosto de comer você de manhã, como na cena daquele filme em que a moça azul mergulha numa piscina de insustentável leveza. Gosto de comer você de manhã pra me curar da má sorte que porventura o dia me traga. Gosto de comer você de manhã e sair de casa sem banho com o cheiro bom de você entranhado em minha barba por fazer. Gosto de comer você de manhã. E hoje. E amanhã. Gosto.

2.

Em primeiro lugar, não é verão. E ela não mora no Rio de Janeiro. O lugar é qualquer um num dia tal. E ela está de frente pro espelho. Uma mulher diante do espelho não é o mesmo que um homem diante do espelho. As sensações são outras. O momento mais filosófico é específico para um e outro. Uma mulher diante do espelho seria, em grau de experiência, o mesmo que um homem mijando. É um compromisso segurar o pau enquanto mija. É um compromisso olhar-se no espelho. Uma mulher diante do espelho pensa. Um homem segurando o pau é paciente. Reflete ao som do mijo que escorre. Gesto simbólico do semear a terra. Gesto simbólico da responsabilidade de marcar território. Uma mulher diante do espelho é, para si mesma, a outra que sabe o maior segredo desta anônima e cotidiana figura que acompanha esse homem que mija. Ela olha diante do espelho e a memória vem à tela dos olhos refletidos. Ensaia o olhar de quando de frente a um outro pôde reconhecer-se; e uma sensação cresce do centro do corpo deixando úmido o canto dos olhos. Uma mulher é sempre um segredo delicado. Primeiro gelo do lago. Chuva na vidraça. Coisas mínimas. Um homem mijando merece respeito por ser incapaz de violência. A delicadeza que ele desenvolveu até ali para segurar o pau, deveria, algumas vezes, exercitar para abraçar a mulher que se olha diante do espelho.


* Escritora

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