A seca
* Por
Euclides da Cunha
De repente, uma
variante trágica.
Aproxima-se a seca.
O sertanejo adivinha-a
e prefixa-a graças ao ritmo singular com que se desencadeia o flagelo.
Entretanto não foge
logo, abandonando a terra a pouco e pouco invadida pelo limbo candente que
irradia do Ceará.
Buckle, em página
notável, assinala a anomalia de se não afeiçoar nunca, o homem, às calamidades
naturais que o rodeiam. Nenhum povo tem mais pavor aos terremotos que o
peruano; e no Peru as crianças ao nascerem têm o berço embalado pelas vibrações
da terra.
Mas o nosso sertanejo
faz exceção à regra. A seca não o apavora. É um complemento à sua vida
tormentosa, emoldurando-a em cenários tremendos. Enfrenta-a, estóico. Apesar
das dolorosas tradições que conhece através de um sem-número de terríveis
episódios, alimenta a todo o transe esperanças de uma resistência impossível.
Com os escassos
recursos das próprias observações e das dos seus maiores, em que ensinamentos
práticos se misturam a extravagantes crendices, tem procurado estudar o mal,
para o conhecer, suportar e suplantar. Aparelha-se com singular serenidade para
a luta. Dois ou três meses antes do solstício de verão, especa e fortalece os
muros dos açudes, ou limpa as cacimbas. Faz os roçados e arregoa as estreitas
faixas de solo arável à orla dos ribeirões. Está preparado para as plantações
ligeiras à vinda das primeiras chuvas.
Procura em seguida
desvendar o futuro. Volve o olhar para as alturas; atenta longamente nos
quadrantes; e perquire os traços mais fugitivos das paisagens...
Os sintomas do flagelo
despontam-lhe, então, encadeados em série, sucedendo-se inflexíveis, como
sinais comemorativos de uma moléstia cíclica, da sezão assombradora da Terra.
Passam as "chuvas do caju" em outubro, rápidas, em chuvisqueiros
prestes delidos nos ares ardentes, sem deixarem traços; e pintam as caatingas,
aqui, ali, por toda a parte, mosqueadas de tufos pardos de árvores
marcescentes, cada vez mais numerosos e maiores, lembrando cinzeiros de uma
combustão abafada, sem chamas; e greta-se o chão; e abaixa-se vagarosamente o
nível das cacimbas... Do mesmo passo nota que os dias, estuando logo ao
alvorecer, transcorrem abrasantes, à medida que as noites se vão tornando cada
vez mais frias. A atmosfera absorve-lhe, com avidez de esponja, o suor na
fronte, enquanto a armadura de couro, sem mais a flexibilidade primitiva, se
lhe endurece aos ombros, esturrada, rígida, feito uma couraça de bronze. E ao
descer das tardes, dia a dia menores e sem crepúsculos, considera,
entristecido, nos ares, em bandos, as primeiras aves emigrantes, transvoando a
outros climas...
É o prelúdio da sua
desgraça.
Vê-o acentuar-se, num
crescendo, até dezembro.
Precautela-se:
revista, apreensivo, as malhadas. Percorre os logradouros longos. Procura entre
as chapadas que se esterilizam várzeas mais benignas para onde tange os
rebanhos. E espera, resignado, o dia 13 daquele mês. Porque em tal data, usança
avoenga lhe faculta sondar o futuro, interrogando a Providência.
É a experiência
tradicional de Santa Luzia. No dia 12 ao anoitecer expõe ao relento, em linha,
seis pedrinhas de sal, que representam, em ordem sucessiva da esquerda para a
direita, os seis meses vindouros, de janeiro a junho. Ao alvorecer de 13
observa-as: se estão intactas, pressagiam a seca; se a primeira apenas se
deliu, transmudada em aljôfar límpido, é certa a chuva em janeiro; se a
segunda, em fevereiro; se a maioria ou todas, é inevitável o inverno
benfazejo.1
Esta experiência é
belíssima. Em que pese ao estigma supersticioso tem base positiva, e é
aceitável desde que se considere que dela se colhe a maior ou menor dosagem de
vapor d’água nos ares, e, dedutivamente, maiores ou menores probabilidades de
depressões barométricas, capazes de atrair o afluxo das chuvas.
Entretanto, embora
tradicional, esta prova deixa ainda vacilante o sertanejo. Nem sempre desanima,
ante os seus piores vaticínios. Aguarda, paciente, o equinócio da primavera,
para definitiva consulta aos elementos. Atravessa três longos meses de
expectativa ansiosa e no dia de S. José, 19 de março, procura novo augúrio, o
último.
Aquele dia é para ele
o índice dos meses subseqüentes. Retrata-lhe, abreviadas em doze horas, todas
as alternativas climáticas vindouras. Se durante ele chove, será chuvoso o
inverno; se, ao contrário, o Sol atravessa abrasadoramente o firmamento claro,
estão por terra todas as suas esperanças.
A seca é inevitável.
Então se transfigura.
Não é mais o indolente incorrigível ou o impulsivo violento, vivendo às
disparadas pelos arrastadores. Transcende a sua situação rudimentar. Resignado
e tenaz, com a placabilidade superior dos fortes, encara de fito a fatalidade
incoercível; e reage. O heroísmo tem nos sertões, para todo o sempre perdidas,
tragédias espantosas. Não há de revivê-las ou episodiá-las. Surgem de uma luta
que ninguém descreve - a insurreição da terra contra o homem. A princípio este
reza, olhos postos na altura. O seu primeiro amparo é a fé religiosa.
Sobraçando os santos milagreiros, cruzes alçadas, andores erguidos, bandeiras
do Divino ruflando, lá se vão, descampados em fora, famílias inteiras - não já
os fortes e sadios senão os próprios velhos combalidos e enfermos claudicantes,
carregando aos ombros e à cabeça as pedras dos caminhos, mudando os santos de
uns para outros lugares. Ecoam largos dias, monótonas, pelos ermos por onde
passam as lentas procissões propiciatórias, as ladainhas tristes. Rebrilham
longas noites nas chapadas, pervagantes, as velas dos penitentes... Mas os céus
persistem sinistramente claros; o Sol fulmina a terra; progride o espasmo
assombrador da seca. O matuto considera a pobre apavorada; contempla
entristecido os bois sucumbidos, que se agrupam sobre as fundagens das
ipueiras, ou, ao, longe, em grupos erradios e lentos, pescoços dobrados,
acaroados com o chão, em mugidos prantivos "farejando a água"; - e
sem que se lhe amorteça a crença, sem duvidar da Providência que o esmaga,
murmurando às mesmas horas as preces costumeiras, apresta-se ao sacrifício.
Arremete de alvião e enxada com a terra, buscando nos estratos inferiores a
água que fugiu da superfície. Atinge-os às vezes; outras, após enormes fadigas,
esbarra em um lajem que lhe anula todo o esforço despendido; e outras vezes, o
que é mais corrente, depois de desvendar tênue lençol líquido subterrâneo, o vê
desaparecer um, dois dias passados, evaporando-se sugado pelo solo. Acompanha-o
tenazmente, reprofundando a mina, em cata do tesouro fugitivo. Volve, por fim,
exausto, à beira da própria cova que abriu, feito um desenterrado. Mas como
frugalidade rara lhe permite passar os dias com alguns manelos de paçoca, não
se lhe afrouxa, tão de pronto, o ânimo.
Ali está, em torno, a
caatinga, o seu celeiro agreste. Esquadrinha-o. Talha em pedaços os mandacarus
que desalteram, ou as ramas verdoengas dos juazeiros que alimentam os magros
bois famintos; derruba os estípites dos ouricuris e rala-os, amassa-os,
cozinha-os, fazendo um pão sinistro, o bró, que incha os ventres num enfarte
ilusório, empanzinando o faminto; atesta os jiraus de coquilhos; arranca as
raízes túmidas dos umbuzeiros, que lhe dessendentam os filhos, reservando para
si o sumo adstringente dos cladódios do xiquexique, que enrouquece ou extingue
a voz de quem o bebe, e demasia-se em trabalhos, apelando infatigável para
todos os recursos, - forte e carinhoso - defendendo-se e estendendo à prole
abatida e aos rebanhos confiados a energia sobre-humana.
Baldam-se-lhe, porém,
os esforços.
A natureza não o
combate apenas com o deserto. Povoa-a, constrastando com a fuga das seriemas,
que emigram para outros tabuleiros e jandaias, que fogem para o litoral remoto,
uma fauna cruel. Miríades de morcegos agravam a magrém, abatendo-se sobre o
gado, dizimando-o. Chocalham as cascavéis, inúmeras, tanto mais numerosas
quanto mais ardente o estio, entre as macegas recrestadas.
À noite, a suçuarana
traiçoeira e ladra, que lhe rouba os bezerros e os novilhos, vem beirar a sua
rancharia pobre.
É mais um inimigo a
suplantar.
Afugenta-a e
espanta-a, precipitando-se com um tição aceso no terreiro deserto. E se ela não
recua, assalta-a. Mas não a tiro porque sabe que desviada a mira, ou pouco
eficaz o chumbo, a onça, "vindo em cima da fumaça", é invencível.
O pugilato é mais
comovente. O atleta enfraquecido, tendo à mão esquerda a forquilha e à direita
a faca, irrita e desafia a fera, provoca-lhe o bote e apara-a no ar,
trespassando-a de um golpe.
Nem sempre, porém,
pode aventurar-se à façanha arriscada. Uma moléstia extravagante completa a sua
desdita - a hemeralopia. Esta falsa cegueira é paradoxalmente feita pelas
reações da luz; nasce dos dias claros e quentes, dos firmamentos fulgurantes,
do vivo ondular dos ares em fogo sobre a terra nua. É uma pletora do olhar. Mas
o Sol se esconde no poente a vítima nada mais vê. Está cega. A noite afoga-a,
de súbito, antes de envolver a terra. E na manhã seguinte a vista extinta lhe
revive, acendendo-se no primeiro lampejo do levante, para se apagar, de novo, à
tarde, com intermitência dolorosa.
Renasce-lhe com ela a
energia. Ainda se não considera vencido. Restam-lhe, para desalterar e
sustentar os filhos, os talos tenros, os mangarás das bromélias selvagens.
Ilude-os com essas iguarias bárbaras.
Segue, a pé agora,
porque se lhe parte o coração só de olhar para o cavalo, para os logradouros.
Contempla ali a ruína da fazenda: bois espectrais, vivos não se sabe como,
caídos sob as árvores mortas, mal soerguendo o arcabouço murcho sobre as pernas
secas, marchando vagarosamente, cambaleantes; bois mortos há dias e intactos,
que os próprios urubus rejeitam, porque não rompem a bicadas as suas peles esturradas;
bois jururus, em roda da clareira de chão entorrado onde foi a aguada
predileta; e, o que mais lhe dói, os que ainda não de todos exaustos o
procuram, e o circundam, confiantes, urrando em longo apelo triste que parece
um choro.
E nem um cereus avulta
mais em torno; foram ruminadas as últimas ramas verdes dos juás...
Trançam-se, porém, ao
lado, impenetráveis renques de macambiras. É ainda um recurso. Incendeia-os,
batendo o isqueiro nas acendalhas das folhas ressequidas para os despir, em
combustão rápida, dos espinhos. E quando os rolos de fumo se enovelam e se
diluem no ar puríssimo, vêem-se, correndo de todos os lados, em tropel moroso
de estropeados, os magros bois famintos, em busca do último repasto...
Por fim tudo se esgota
e a situação não muda. Não há probabilidade sequer de chuvas. A casca dos
marizeiros não transuda, prenunciando-as. O nordeste persiste intenso, rolante,
pelas chapadas, zunindo em prolongações uivadas na galhada estrepitante das
caatingas e o Sol alastra, reverberando no firmamento claro, os incêndios
inextinguíveis da canícula. O sertanejo, assoberbado de reveses, dobra-se
afinal.
Passa certo dia, à sua
porta, a primeira turma de "retirantes". Vê-a, assombrado, atravessar
o terreiro, miseranda, desaparecendo adiante, numa nuvem de poeira, na curva do
caminho... No outro dia, outra. E outras. É o sertão que se esvazia.
Não resiste mais.
Amatula-se num daqueles bandos, que lá se vão caminho em fora, debruando de
ossadas as veredas, e lá se vai ele no êxodo penosíssimo para a costa, para as
serras distantes, para quaisquer lugares onde o não mate o elemento primordial
da vida.
Atinge-os. Salva-se.
Passam-se meses.
Acaba-se o flagelo. Ei-lo de volta. Vence-o saudade do sertão. Remigra. E torna
feliz, revigorado, cantando; esquecido de infortúnios, buscando as mesmas horas
passageiras da ventura perdidiça e instável, os mesmos dias longos de transes e
provações demorados.
1. "Conta-se que
no Ceará fizeram esta experiência diante do naturalista George Gardner; mas o
sábio fazendo observações meteorológicas, e chegando a um resultado diferente
do atestado pela santa, exclamou em seu português atravessado: Non! non! Luzia
mentiu..." Sílvio Romero, A poesia popular no Brasil.
(Os sertões, 1902.)
Engenheiro,
militar, físico, naturalista, jornalista, geólogo, geógrafo, botânico, zoólogo,
hidrógrafo, historiador, sociólogo, professor, filósofo, poeta, romancista, ensaísta e
escritor
Espetacular. O homem foi um gênio.
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