sábado, 17 de janeiro de 2015

O português das bulas – II

* Por Deonísio da Silva

O cliente toma óculos ou lupa e começa a difícil tarefa de ler a bula. Na compra do remédio – os marqueteiros dos laboratórios diriam 'produto' – houve dificuldade prévia. O balconista foi obrigado a decifrar os garranchos do médico. Como é que a sociedade brasileira tolera tamanha desconsideração e irracionalidade? A simples troca de letras pode transformar um remédio em veneno. E muitos médicos prescrevem suas receitas numa caligrafia incompreensível.

Um dia desses fui surpreendido com insólita metodologia de interpretação. Balconista e escritor tentavam ler o que certo doutor prescrevera a uma velhinha que, como a mãe do presidente Lula e todas as outras do universo, nascera analfabeta e ainda não tinha aprendido a ler. Foi então que uma luz desceu sobre a mente da balconista. 'Ah, esta receita é do doutor Fulano de Tal'. Ela sabia que aquele médico receitava sempre o mesmo remédio! O estilo, no léxico, lembrava o de Marcel Proust na sintaxe!

Cápsula, drágea, posologia, solução oral, ingestão concomitante etc, eis amostras de palavras e expressões muito freqüentes em bulas. Quem as entende? Na bula de uma pastilha, que sequer entrou numa escola de judô e por isso não tem faixa preta, lemos esta maravilha nas indicações: 'nas irritações e dores orofaríngeas oriundas de infecções ou processos cirúrgicos, como auxiliar no tratamento de angina de Vincent'. Modestos, os pesquisadores dão o próprio nome às doenças que identificaram. O médico francês Henri Vincent estudou a angina e morreu aos 88 anos. Terá chupado muito a tal pastilha? Com faixas vermelhas ou pretas, os remédios custam sempre uma nota preta.

A bula tem uma história curiosa. Veio do latim e significa bolha. As primeiras bulas eram marcas feitas com anel para autenticar documentos oficiais e tinham a aparência de bolhas. Bola em latim é bulla. Foi o rei francês Luís II, o Gago, que entre 877 e 879 denominou bula o selo real. Afinal, semelhava uma esfera ou bola.

Antigamente a embalagem mais comum dos remédios era uma garrafinha. Pendurada num cordão vinha a bula que tinha o fim de atestar que não era uma garrafada, era um remédio oficial. A garrafinha passou a ser denominada frasco. A substância, que era líquida, passou a ser oferecida em comprimidos.

A linguagem das bulas dos remédios deixou de defender os fracos e oprimidos. Hoje, só defende os frascos e comprimidos, como já ironizou antiga peça publicitária.

A Associação Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) – parece nome de cartão de crédito – tomou a iniciativa de modificar as regras para a redação das bulas. Que os laboratórios chamem profissionais que saibam escrever.


* O escritor Deonísio da Silva é Doutor em Letras pela USP e tem trinta livros publicados, entre romances, contos e ensaios, entre os quais os romances Os Guerreiros do Campo, Avante, soldados: para trás, e De onde vêm as palavras, todos publicados pela Girafa. Site: www.deonisio.com.br


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