História inverossímil de
um casal fértil
* Por Mara Narciso
Ano do casamento: 1958. Neta de índia, Maria de Jesus casou-se muito
cedo, antes dos 14 anos. O marido, Jeremias tinha dois anos a mais. Alto e
forte, com uma maneira exageradamente rude, aos 18 anos sentou praça na
polícia, e na corporação trabalhou como soldado. Enquanto isso, a cada dez a
doze meses nascia uma criança na casa pobre, de chão batido, numa localidade
perdida, no meio do nada. Sobre a cabeça, o sol escaldante do norte de Minas,
em meio à seca brava, e poucos pertences, panos e panelas pra lavar. No rio.
Poucos em número, mas muitos num serviço interminável. No fogão de lenha, as
panelas de ferro, que eram lavadas na beira do rio. Lá ia Maria de Jesus com
seus filhos, buscar água, rodilha na cabeça, meninos segurando sua saia. Logo
cedo aprendiam que a vida era dura. E, enquanto lavava roupas, tinha os meninos
ao lado dela. Ficavam brincando próximo a pedra, onde ela açoitava as roupas
descoradas, de tanto sol e muito lavar. O dia corria solto, quase sem relógio.
A única preocupação era estar com o almoço pronto quando Jeremias aparecesse,
às 10 h.
Tivera beleza e formosura, mas a vida lhe tirara os dentes e as forças.
Estava grávida, no finalzinho, pelas suas contas. Até então, estivera nessa
condição na quase totalidade do tempo. Um barrigão imenso bamboleava a sua
frente. Surgia a ponta da sua barriga na curva do caminho e só depois aparecia
o rosto de Maria. Tinha dez filhos, conseguidos em 13 anos. Era
semi-alfabetizada e métodos de evitar já existiam, porém não para o uso dela.
Navegava pra lá e pra cá, com seu corpo de parideira. Um vestidão de chita
verde, manchado, largo e comprido, escondia as suas formas redondas. E nem era
gorda, pois a faina diária impedia acúmulo, mesmo quando comia melhor. Os
filhos mais velhos estudavam na cidadezinha que não era longe, e o marido
deslocava-se para o comercinho de bicicleta.
Jeremias saía cedo, vinha para o almoço, trabalhava de tarde, e, à
noitinha estava de volta. Os catarrentos o esperavam no meio da estrada e
corriam atrás dele fazendo-lhe festa. De vez em quando tinha festejos
religiosos, ocasião em que trabalhava à noite, já que o contingente era de
apenas três pessoas. E a vida pobre avançava. O marido era quem fazia os partos
de Maria. Desde o primeiro, e apenas ele, sem parteira por perto. E começou por
precisão e instinto, e um tantinho de ignorância.
As dores começaram de madrugada. Geralmente são assim. Eram fortes, mas
Maria estava acostumada. Enquanto esperavam a hora, o marido parteiro inventava
coisas para ajudar na expulsão. Colocava uma madeira atravessada na cabeceira
da cama, para Maria segurar e fazer força na hora da dor. Era amarrada na
cumeeira da casa, feito um balanço. Ela obedecia sem reclamar. Então, depois de
horas de sacrifício, num esforço vão, nasceu uma menina morta. E já devia ter
morrido há dias, pois a pele estava se soltando. Maria entendeu que era porque
tinha tido um incêndio na cozinha e ela tinha se sapecado toda, e na sua falta
de instrução imaginou que o fogo teria alcançado a criança. Nasceu a placenta,
mas a barriga continuou a endurecer. Havia outra cria. Passado mais um pouco,
nasceram as pernas e corpo. Era um menino. Mas a cabeça não nascia. Ficou
agarrada lá dentro. Jeremias puxava e não vinha. Era preciso fazer alguma
coisa. A mulher estava fraca, amarela e suando frio. Apavorado, Jeremias
segurou Maria pelas pernas, e, levantando-a no ar, colocou-a de cabeça para
baixo e a sacudiu com força. Os dez filhos estavam lá fora, atrás da porta de
pano de chitão florido. Escutavam, tinham medo, mas obedeciam a ordem de não
entrar. Depois de um bom solavanco, Maria, de ponta cabeça, a criança entrou
novamente em seu corpo, sumindo das vistas do pai. Novo sacolejo e Jeremias,
vendo o resultado das suas tentativas, deitou sua esposa, momento em que
aparecia nova onda de dor. Espremendo, com uma energia que lhe sumia, Maria se
esforçou, e a criança, que misteriosamente girou lá dentro da “mãe do corpo”,
que não se rompeu, nasceu de cabeça, mas também estava morta. Dois mortos, e
uma sobrevivente, a principal. Foi a glória dentro do fracasso.
Ainda outro parto teve Maria nove meses depois. Completava onze filhos
vivos e dois mortos. Também foi Jeremias quem aparou o filho. Mas, a mulher do
cabo, colega e chefe de Jeremias, cismou de ficar com ele. Queria de todo
jeito. Não saía do seu encalço. Faltava se agarrar na camisa do pobre, quando o
via, enquanto rejeitava o marido. Nem era questão de ele lhe dar esperança. A
mulher estava obcecada. Jeremias fez o serviço, depois de adiar um pouquinho. O
cabo não gostou da infidelidade da mulher. Um dia, saindo do trabalho, o
soldado ouviu seu nome:
-Jeremias, olha para cá, que não mato homem pelas costas - e enfiou a
faca peixeira oito vezes no peito e na barriga do soldado. Cena feia de se ver,
sangue empapando a poeira da rua. A viúva e os filhos mais velhos levaram o
corpo.
Maria de Jesus fez o enterro, chorou as mágoas e a saudade de Jeremias,
e nunca mais quis saber de fazer filho. O morto tinha 30 anos e Maria ficou
viúva aos 28, e com onze meninos. Recebia a pensão, e de fome não morreram. Os
filhos foram para a cidade grande, e hoje contam a história de amor, pobreza e
grande fertilidade de seus pais, brasileiros que não fizeram nada de
extraordinário, a não ser filhos e partos que a medicina diz não ser possível
acontecer.
*Médica endocrinologista, jornalista
profissional, membro da Academia Feminina de Letras e do Instituto Histórico e
Geográfico, ambos de Montes Claros e autora do livro “Segurando a
Hiperatividade”
Há uma riqueza de detalhes em alguns dos seus relatos que me fazem apostar na veracidade deles. O fato é que, verdadeiros ou não, são sempre muito bem escritos e encerram ótimas reflexões. De novo, muito bom, Mara.
ResponderExcluirPois é, Marcelo, parece mentira e pode até ser, porém, ouvi da boca de uma das filhas, que me contou o caso entusiasticamente com todas as cores e sabores. Apenas transcrevi o que ouvi, embora achando fantástico demais.
ExcluirObrigada por comentar.