Tradições contradições – 77
* Por Walter
da Silva
Sem
perceber direito estamos vivenciando um tempo de metáforas e eufemismos. Aparentemente
pode ser um sinal de que estamos menos sinceros, francos e respeitosos. Ou
ainda, que não cultivamos uma mínima certeza de relações com o próximo. E a
volatilidade dos diálogos que travamos, ou imaginamos travar, não nos é
possível mensurar ou tomar ciência.
Dá sempre
a impressão de ser tudo muito rápido, embora não sintamos. A contemporaneidade
deste século vinte e um, até prova em contrário, parece se revestir de novas
camadas de tinta. Um tingimento cultural. Quando vejo um filme de época isso
fica muito claro pra mim. Exemplo disso é uma sequência inesquecível no
“Drácula de Bram Stoker”, sucesso de Francis Ford Coppola.
Algumas
tomadas em slow-motion (câmera lenta) no centro de uma Londres circunspecta,
onde Mina (Winona Ryder) está sendo perseguida discretamente pelo príncipe Vlad
(Gary Oldman), durante uma tarde de vento brando. A música de fundo, como se
reproduzida por gramophone e o vestuário oitocentista.
O mesmo
sentimento me passa ao ler a atmosfera lírica e reticente dos livros de Jane
Austen. Ou ainda, as lembranças de como nossos antepassados se tratavam entre
si. O que era “olá” hoje é um frio e distante “oi”. Tão informal e
despreocupado como a relação entre pais e filhos, para estranheza dos
primeiros.
Do meu
ponto-de-vista como da maioria, essa informalidade revela um clima de
descontração, relaxamento e naturalidade. Para os mais estoicos, exigentes e
conservadores, essa é uma forma disfarçada de desrespeito. Mas mesmo assim não
nego que me toma um sentimento de que um tônus de seriedade de algum tempo
anterior, já não é mais o mesmo.
No
contato direto com jovens de determinada faixa social, observo um ar de
descaminho e de incerteza quanto ao futuro próximo. Poucos têm com alguma
nitidez mental o que querem mesmo “ser quando crescerem”. E essa metáfora
aludida não é apenas gramatical é atitudinal. Esposam aquilo que não praticam,
grosso modo.
Ou me mantive eu tradicionalista demais? Ou parei no meu tempo psicológico?
Ou me mantive eu tradicionalista demais? Ou parei no meu tempo psicológico?
Hoje,
quando sou chamado de “tio”, já nem percebo mais que ele ou ela quiseram
significar “coroa”. Afinal, a linguagem e o sistema de atitudes mudam de acordo
com o ambiente. Em classes sociais mais humildes e carentes de educação formal,
esse fenômeno ocorre indistintamente. Em dez jovens da classe “C”, um consegue
externar o produto do que realmente aprendeu e o fez melhorar sua relação com o
mundo em sua volta. Em geral receberam pouca ou quase nenhuma educação
doméstica, resultado de pais que também sofrem do mesmo mal.
Na
prática, quando peço para não me chamar de “senhor”, tento quebrar um gelo que
supostamente julguei existir. Mas ele já foi quebrado muitos minutos antes. São
traços culturais apreendidos na linguagem escassa do cotidiano na escola, no
lar e nas baladas. Aliás, o vocabulário da juventude atual não vai além de
oitocentas palavras. O juízo de valor que faço não é moral, mas estético.
Da mesma
forma que tais pais não aprenderam a falar, também não conseguiram aprender a
agir. Acho estranhíssimo presenciar mulheres já casadas, às vezes de grau
universitário, pedindo a bênção aos avós de seus filhos. Essa é uma camada de
tinta cultural de fundo religioso, cuja frescura ainda se dá. Refiro-me à
tinta, claro. E essa é uma herança dos primórdios da “civilização” nacional.
Existe
nas brechas empoeiradas da parede da senzala, um pouco da poeira da casa
grande. É como uma simbiose que não se nota nem se vê a olho nu. Quanto ao
conjunto de eufemismos, esse é de largo espectro. Aqui acolá ouvimos alguém
chamar o outro de moreno porque não é de bom alvitre chamar de negro, por mais
suavemente que se o faça.
Noutra
oportunidade citei Sergio Buarque de Holanda, quando se refere ao brasileiro
como um ser cordial. Hoje, tem-se a mais nítida impressão de estar patente e
rotineira a intimidade que tanto queríamos ocultar. Isso sem que nos refiramos
ao decoro e à fama no meio em que se convive. O mais discreto e recluso ser
humano não está isento nem imune da língua alheia. Se não possuir defeito
algum, o grupo social mais próximo faz questão de atribuir. E não imagine você
que reside em apartamento, que sua vidinha introspectiva e sem alarde está
livre dessa pecha.
Quando
morei em Merdópolis**, por mais sisudo e monossilábico que pudesse aparentar,
descobriram que eu namorava uma mulher não pernambucana. Vai ver foi o garçom
do “Laçador” que, numa curta conversa, me ouviu falar da moça e seu sotaque
bairristamente cearense. Para os mais jovens, esse nome se refere a uma
churrascaria metida a besta lá pelos confins do subúrbio. (Nem sei se ainda
está lá). Foi ali numa tarde de sábado, quando eu bebericava um gim tônico, que
pude conhecer um cantor brasileiro que fizera sucesso com “Suave é a noite”.
Bem, para
não me acusarem de saudosista, falso moralista e sonso demais, estou apenas
constatando o que ouço de muita gente bem mais jovem do que eu, para quem,
metáfora ou eufemismo, são apenas figuras de retórica. Qualquer dia desses me
mudo pra Pasárgada, porque lá até o rei foi destronado e todo mundo é farinha
do mesmo saco.
**Boa-viagem,
por residir aquém do canal de Setúbal.
*
Escritor
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