quarta-feira, 31 de março de 2010




Tudo muda de lugar

* Por Sayonara Lino

Saiu do elevador, deu dois passos, olhou para a frente e notou algo estranho: o quadro que enfeitava a parede do hall estava pendurado ao contrário. Abriu a porta com ansiedade, teve receio, mas entrou no apartamento. Olhou ao redor e aos poucos descobriu que os objetos estavam desarrumados.

Na sala de estar, as jarras que antes ficavam do lado esquerdo da televisão, na estante, estavam, agora, do lado direito. A persiana que sempre ficava fechada para que a luz não entrasse, estava suspensa. As janelas abertas, as portas escancaradas, a cafeteira ligada, a torneira do lavabo, aberta.

Deu mais alguns passos corredor adentro até chegar em seu quarto. O edredom com motivos japoneses, dupla face, estava do outro lado, diferente de quando havia saído de casa. Abriu o armário e percebeu que suas roupas estavam todas do lado avesso. As bolsas que ficavam na parte de cima, milimetricamente organizadas, foram colocadas na gaveta de baixo. A lingerie, antes cuidadosamente separada em uma gaveta à parte, fora misturada com pares de meias de todos os tipos: finas, de lã, soquetes, cano alto.

Nas prateleiras do quarto, as bonecas de porcelana haviam sido rabiscadas, as fotos nos álbuns rasgadas, os livros, misturados.

No banheiro social, os xampus importados foram substituídos por outros, bem simples, populares de farmácia. No lugar da tinta de cabelo sofisticada, um tubo mais barato, um tanto rebocado.

De modo geral, muito havia sido modificado, substituído, remexido, destroçado. Ela, que não gostava de alterações, não conseguia compreender o motivo de tal situação. O mais insuportável de tudo aquilo, era perceber que não podia ter controle sobre as coisas, mesmo que fossem suas. Difícil aceitar que tudo muda de lugar.

* Jornalista, com especialização em Estudos Literários pela Universidade Federal de Juiz de Fora e atualmente finaliza nova especialização em Televisão, Cinema e Mídias Digitais, pela mesma instituição. Colunista do portal www.ubaweb.com/revista.

2 comentários:

  1. Não somos seres enraízados a ponto de
    ficarmos permanentemente parados, inertes.
    As mudanças ocorrem muitas vezes a nossa
    revelia, mas não dói, só modifica.
    Ótimo texto.
    Beijos Sayonara.

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  2. O texto tem um toque de Transtorno Obsessivo Compulsivo. Quando há muita desordem interior, é preciso que do lado externo tudo esteja bem arrumado, até para determinar quem manda em quem. Muito profundo e inquietante esse texto. Mexeu comigo, pois sou um pouco assim: superorganizada.

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