domingo, 28 de março de 2010




O goleiro e o passarinho

* Por Paulinho Assunção

Fica o dito pelo desdito, fica a verdade pela desverdade: não foi culpa minha o passarinho ter vindo junto com a bola. Qual goleiro pode imaginar tal despropósito?

Foi gol — mas e daí?

Não levo a culpa para casa. Não me envergonho. Andarei de peito aberto pelo bairro e dormirei o meu sono com a consciência deitada em travesseiro de pluma.

Se me perguntarem, eu direi: foi o passarinho.

Repito outra vez: foi o passarinho.

Com uma única mão eu pegaria aquela bola. Tantas eu peguei com igual potência, com igual trajeto, com igual pontaria. Mas a culpa foi do passarinho.

Tempos estranhos são esses quando os passarinhos decidem jogar futebol. Tempos esquisitos.

Se ele era canário? Isto eu não sei; provável que fosse um pardal. Ou tiziu. Ou sanhaço. Ou andorinha. Bicho de pena com uma flecha dentro quase no rumo do meu coração.

Sei que era pequeno, pequeno e veloz. E ele veio junto com a bola. Talvez em cima dela, talvez medindo velocidade com ela, talvez fazendo folguedos em volta dela.

Um passarinho intrujão — se querem saber.

Eu estava a postos, na posição certa, com olho de lince, com mãos de urso, com a destreza de um gato ou de um tigre.

Tudo estava quieto. Todos os relógios ficaram parados quando percebi sinais de perigo no meio do campo. Se chovesse, seria sem trovão. Se o mundo acabasse, seria em silêncio. O perigo armou trapaças pelo lado do campo de onde eu via o fim da cidade, o fim das árvores, o fim de tudo.

Goleiro. Goleiro é o que sabe quando o diabo ri com dois dentinhos. Goleiro é estar no rumo da tempestade. Sem goleiro — ai do gol que jamais terá sabor de gol se lá não estiver um mão de urso com fome e com sede, um mão de tamanduá para o abraço arredondado.

Sim, o perigo armou trapaças pelo lado do campo onde nasce o destino. Vi quando o ponta deles chutou com os pavios e as pólvoras, chute que dava de São Paulo a Brasília, de Uberlândia a Pindamonhangaba.

Pensei comigo: “É minha, eu pego”. E armei o meu bote.

Zero a zero e o jogo acabaria. Bom para nós, porque era no campo deles, com a fanfarra deles, com a torcida deles, gente-fera cuspindo as brasas e cuspindo os relâmpagos.

E a bola veio, bala de canhão na tarde do bairro. Bala-bola que furava um azul que era quase um mar arrodeado de nuvens. Nuvens de paz numa hora todinha feita de guerra.

E foi aquele silêncio. Foi aquele calafrio.

Eu subi. Tive asas. Estava quase um helicóptero. Subi até o ângulo esquerdo, fui à gaveta da trave, era dono do meu vôo.

E de repente. E de repente apareceu o maldito. Senti a revoada, o bater de asas, o pio, o roçar das penas no meu rosto. Foi um lusco-fusco, foi um corisco.

E a bola nua, mulher desnuda, no fundo da rede.

* Poeta, ficcionista e jornalista com mais de uma dezena de livros publicados. Foi membro da Comissão de Redação do Suplemento Literário do Minas Gerais e repórter na sucursal mineira da Agência Estado. Ganhou o Prêmio Cidade de Belo Horizonte de 1983 (Poesia) e o Prêmio Minas de Cultura (Guimarães Rosa), categoria contos, em 1998.

2 comentários:

  1. Tramóias do destino.
    Sacanagem do acaso.
    Mas não tenho certeza
    de que não xingaria o goleiro.
    Parabéns.
    Abraços

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  2. Lince, urso, gato, tigre: não conseguiram ajudá-lo a pegar a bola. O gato, pelo menos ele, poderia pegar o passarinho, largando a bola para você. O silêncio revelado lembrou-me o gol do Uruguai em 1950 no Maracanã.

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