domingo, 21 de março de 2010




Laudas da vida inteira

* Por Nei Duclós

Não faz tanto tempo assim. O objeto tinha um carrilhão em forma de cilindro, que avançava para a esquerda sempre que nos aprofundávamos naquele ofício escolhido contra todas as evidências e conselhos. Os espaços entre as frases eram definidos por uma seqüência de estalos, ruídos mínimos nas redações barulhentas. Eu preferia os três espaços, que podem ser comparados à atual uma linha e meia do editor de texto. Sempre dava para acrescentar alguma coisa, corrigir, voltar atrás, riscar, sem comprometer a integridade da lauda. Era preciso economizar esforço, aproveitar a penosa colocação da folha no rolo compressor, não encher o cesto de frases mal começadas, palavras toscas, rabiscos.

As teclas pediam determinação funda. Dependiam da força dos dedos, desobedientes às lições de datilografia. O hábito transformava cada aperto num atalho para o objetivo maior: o fim do compromisso e o início da liberdade. Catar milho era a radicalidade dessa distorção. A maioria ficava na linha intermediária, compondo tabelinha entre três dedos, como se escrevêssemos de trivela, com efeito, para que o texto atingisse a maioridade da folha seca e quando chegasse ao ápice caísse miseravelmente no canto indefensável.

Definido o espaço, colocava-se a lauda amarelada e pautada, com cabeçalhos do jornal da hora. Tenho coleção preciosa desses exemplares de uma civilização perdida, não que costumasse guardar meus originais que, como todos os outros, sumiam pelo buraco negro da revisão e da gráfica. Mas porque as usávamos para tudo, especialmente para, nas costas delas, abraçar o que tinha nos levado àquela situação: a literatura. Escritores que adiaram por mais de uma vida seus livros, acumulávamos pilhas de laudas escritas de poemas e pequenos contos, que formavam pastas. Outros tinham preferências diversas. Guardavam recortes de jornais, que ficavam empilhados pela casa, para futuros projetos e balanços, para desespero da faxina e das mudanças.

Fazíamos parte de uma estranha civilização que acreditávamos eterna. Éramos seres acumulativos e nossas gavetas eram a cultura marginal e perdida. Só uma parte dessa produção veio à tona ou sobreviveu para participar da grande rede. O resto ficou esquecido, guardado para um futuro alternativo, o tempo imaginado de uma época que no fim não se realizou.

As laudas nos identificavam. Um dia fui convocado para entrevistar o David Drew Zingg, o fotógrafo-filósofo, que eu, com minha indiferença vocacionada, não conhecia pessoalmente. Sempre cultivei, por inércia, essa percepção apartada do que chamam realidade. No miolo de todos os furacões, imaginava ser redundância ter que prestar atenção em cada detalhe, saber quem David era, o cara que levou a bossa nova para os Estados Unidos. Talvez isso eu até soubesse, mas não atinava com o rosto do artista.

Marcamos a entrevista num restaurante, desses sérios, que se freqüentam no horário do almoço. Não era nossa intenção beber o que fosse. Como não sabia quem era meu objeto de reportagem, dei meia volta depois de viajar num plano geral pelos comensais. Foi só eu me virar para ouvir alguém gritar meu nome. “Como você me reconheceu?” perguntei, curioso. “Foram as laudas”, disse ele. “Esse maço de papel que você colocou no bolso de trás da calça”.

Era um recurso inútil, pois por mais que eu caprichasse em meus garranchos nas conversas com minhas vítimas, jamais os decifrava quando chegava à redação. Fazia tudo de memória, pois a matéria se desenvolvia enquanto eu escutava, mais do que perguntava. Sempre gostei de ouvir e até hoje acho a pergunta desnecessária, a não ser quando o entrevistado é chato e é preciso intervir por pura vingança.

As janelas que se abriam nas rotinas das redações eram as personalidades que nos visitavam, o que nem sempre rendiam matérias. As redações eram espaços de convivência e de lobby. Como eu não atinava nos verdadeiros objetivos da visita, sempre achava que vinham me ver pelo que eu um dia escrevi nas costas das laudas. Mas eram visitas sinceras. Recebi na Folha o Cacaso, na Senhor o Paulo Leminski (com quem compartilhei uma cerveja com conhaque no meio da tarde em plena Lapa de Baixo) e houve uma época em que era interrompido da minha faina (fechar, fechar, fechar) pelo mímico Ricardo Bandeira, que gostava de falar como ninguém. “Gostei muito do teu livro, Outono”, dizia Bandeira olhando para o infinito. É Outubro, eu corrigia, mas ele prestava atenção em algo mais profundo. .

Mas o melhor era a convivência com escritores que existiam nas redações. Humberto Werneck olhava desolado para a paisagem suburbana que se avistava da Editora Três e ao som dos trens me dizia: “Nei, você conhece algum lugar chamado Lapa que seja bonito? Veja o caso do Rio de Janeiro. E um como esse, que é Lapa de Baixo?” Num almoço numa das biroscas que rodeavam a editora, um dia José Onofre, autor do melhor romance policial brasileiro, Sobra de Guerra (L&PM Editores), tascou essa diante de um horrendo prato feito: “Já pisei nisso, comer é a primeira vez”. Onofre proferia a máxima e dava crédito: era a frase de um filme de guerra.

No fundo esse era isso: estávamos em guerra. Nossa vocação lutava com o deadline. As palavras tinham lugar fixo e não são como agora, que somem pelo espaço virtual para reaparecer mais adiante. Éramos esgrimistas de uma língua estrangeira, que se tornou nossa por tradição e insistência. Submetíamos os textos aos mestres, que muitas vezes gargalhavam. Mas tudo acabava no bar.

- “Nei, vamos lá embaixo parar de tremer?” me dizia Markito, depois de um fechamento pesado na Ilustrada. Colocávamos refrigerante na parte de cima do balcão e vodka na parte debaixo. É que às vezes éramos flagrados pelos capitães do jornal, que vinham bebericar algo. Cumprimentávamos com a cara lavada e mandávamos ver no destilado, depois temperado com cerveja. Essa era a rotina dos jornalistas do eito, os que seguravam a barra dos jornalões.

No dia seguinte, recomeçávamos colocando uma lauda na máquina e definindo o espaço. Mas no fundo, queríamos apenas rabiscar o que nos ocorrera na viagem até ali. Uma frase, um poema, alguma idéia perdida. Fomos assim, escritores ambulantes em lugares em que a literatura era proibida. Sem querer, adquirimos o vício da escrita diária, pois por trás dos textos que publicamos, existiam outros, ocultos. Os dois tipos cruzaram o tempo e podemos nos orgulhar hoje da maioria deles. Como irmãos gêmeos, que brigam o tempo todo, jornalismo e literatura foram a nossa faina diária, num tempo de guerra.

Nada parece verossímil, nesta época tão distante. Faz sim muito tempo. Mas o que é o tempo diante dos loucos que decidiram escrever para viver num país ágrafo? Parece que fazemos parte de um tesouro sem mapa, aterrado por milhões de palavras, que ao invés de nos sufocar, nos revelam.

* Jornalista e bacharel em História, trabalhou em Porto Alegre, Blumenau, São Paulo, Vitória e Florianópolis, onde é editor-executivo de duas revistas. Fez parte de equipes da revista Senhor (semanal e quinzenal), Folha Ilustrada, Jornal de Santa Catarina, “Aqui” e Folha da Tarde.

2 comentários:

  1. Há palavras que ecoam e
    atravessam o tempo...mesmo
    que a memória desse país seja
    tão...curta.
    Ótimo texto
    Abraços

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  2. Diferente dos jornais, é um texto que não acaba no dia que passou.

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