segunda-feira, 29 de março de 2010




Eu brindo à celebração do encontro

* Por Eduardo Murta

Tudo começou, creiam, em razão de um simples pato. Há quem afirme que foi providencial ele aparecer ali, plena Zona Sul, ponto em que prédios reinavam absolutos e secos. Verdade é que apareceu. Sozinho. Amarelinho. Fim de tarde, atravessando a rua, Duílio o acolheu em segredo. Assentou o bichinho sob a blusa e minutos mais estariam à janela do décimo andar. O “papai” lhe mostrando as luzes da cidade já se pigmentando entre as vielas abaixo. Viveria experiências novas, como o banquete secreto com omelete, bacon, folhas de alface e feijão. Dia seguinte, o estranhamento dos pais ao odor estranho e ao ar de desconcerto do menino. Não, nada. Não, nada... Foi repetindo, enquanto da junção entre a cama e a parede a cabeça do patinho emergia da caixa de sapatos. Feliz, como quem dava bom dia ao sol. Parecia exalar contentamento. A mãe não deu tempo a ensaios de comoção. Julgou que era uma dessas obras desatinadas do pai e determinou: que dessem rumo a ele o quanto antes.

Juarez e Du mudos, pensando em saídas. O melhor seria doar. Buscaram site que pudesse ajudá-los, postaram foto do órfão e logo surgiu pretendente. Marcaram de se ver na Feira dos Produtores. O menino incomodado com os traços do homem. Enxergou nele a figura de um açougueiro. Puxou o pai para um canto, contou da desconfiança e, ignorado, agarrou o bicho e descambou barracas adentro. Fantasiou as lâminas afiadas, o sangue, a frigideira...

De longe, concentrou-se no tom da conversa com o estranho. Um nítido pedido de desculpas. Que se danasse! Fritar, ninguém iria fritá-lo! Escutou a dura repreensão paterna e, pior, seguiu convencido de que fora traído, que havia um trato para selar a doação ao “sujeito do açougue”. E, 8 anos mal completados, já carregava suas certezas e não se envergonha em exibi-las. Ali mesmo as lágrimas lhe saltaram normas, que chegavam a desenhar um veio em vermelho ao rosto. Tremia. Tremia, e repetia: “Vai matar, vai matar...”
.
Se desmanchou em pranto no carro, no elevador. Dormiu num soluço de fazer dó. Juarez, impotente, resolveu invocar o conselho de avós. No café da manhã estavam os quatro por lá. Felisberto, sarcástico, sugeriu panela. Albina, ingênua, que vendessem o apartamento e se mudassem para uma casa. Augusta, cifrões sempre em mente, pensou no sucesso de uma rifa. Restou Apolinário. O silêncio. Todos concentrados nele. Propôs adotar o bicho. Mencionou, e as órbitas da esposa se voltaram em brasa. Opa, opa, opa! Não no jardim, e jamais na horta dela.

A discussão tomando calor, a porta do quarto se desarmou. O neto num pijama com motivos estelares rompeu ao centro. Esfregou os olhos, e ainda sonolento sorriu à imagem tão acolhedora que o cercava. Atrás dele veio o patinho. Estacionou sob suas pernas, feito estivesse se aninhando. Aquela gente atônita. Como dividir aquilo? Como separar os dois? Faziam dueto singelo e comovente. A mãe chegou em seguida. Deu com a cena. Emudeceu.

Navegava agora nos mares da compreensão, ao ver os avós acolhendo Duílio e a pequena ave à mesa. Contavam casos. Riam. Gargalhavam. Fazia muito não se viam, dois ou três natais atrás, quem se recordaria... Alguém se deu conta, então, de que o destino do pato talvez fosse o que menos importava por ali. Num tempo em que a sensação de acolhimento, de reencontro, tornava a todos um pouco menos órfãos. Brindariam àquilo, mesmo com café, brindariam.

* Jornalista, autor de "Tantas Histórias. Pessoas Tantas", livro lançado em maio de 2006, que reúne 50 crônicas selecionadas publicadas na imprensa. É secretário de Redação do jornal Hoje em Dia, diário de Belo Horizonte. Já teve passagens também pelos jornais Diário de Minas e Estado de Minas, além de Folha de S.Paulo e revista Veja. É um dos colunistas do Hoje em Dia (www.hojeemdia.com.br), onde publica às quartas.

3 comentários:

  1. Que lindo encontro, uma parceria
    inusitada que tocou o coração de
    todos...inclusive o meu.
    Adorei Eduardo.
    Parabéns!
    beijos

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  2. Que linda ode a amizade. Fez bem o menino de impedir o paticídio. Achei diferente o seu modo da narrar de forma mais direta, sem adjetivação como é mais comum nos seus textos. Enfim, uma nova maneira de contar, mais rasgada, mais dura. E por isso mesmo mais comovente.

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  3. A história é linda, Eduardo, e a forma como você a construiu vai nos levando a concluir que não há nada tão bonito e sincero como a amizade entre uma criança e um animal. Desarma os adultos.Parabéns!
    Beijo

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